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Probabilidade Pré-Teste em SRAGs

Calculei a taxa de positividade de RT-PCR para COVID19 em pacientes com síndrome respiratória aguda grave (SRAG) hospitalizados conforme o estado e a data de internamento. Esses dados vem do banco de dados de pacientes hospitalizados SIVEP-Gripe. Considere esses números como a probabilidade pré-teste e interprete os resultados de RT-PCR com cautela, já que a sensibilidade na primeira amostra pode ser de apenas 40-50% (veja meu texto sobre falso-negativos em RT-PCR).

Caso o gráfico do seu estado esteja em branco ou com apenas uma linha minúscula, queixe-se com seu gestor municipal/estadual de saúde que os dados de seu estado não estão sendo atualizados na plataforma SIVEP-Gripe.

Para mais informações sobre o processo de interpretação dos resultados de um teste RT-PCR para COVID19, confira esse ótimo artigo do British Medical Journal.

Fig 1
Linha superior para resultados positivos, e linha inferior para resultados negativos.
Fig 2

Análise das SRAGs Sem Diagnóstico

Notícias recentes tem colocado em primeiro plano o aumento gigantesco das Síndromes Respiratórias Agudas Graves (SRAG) concomitante a chegada da pandemia de COVID19 ao Brasil.

No banco de dados de pacientes diagnosticados com SRAG no Brasil (InfoGripe), é nítido um aumento muito pronunciado de SRAGs sem diagnóstico específico (as chamarei aqui de SRAG4, por sua codificação na plataforma InfoGripe) a partir da semana epidemiológica 10/2020.

Seriam as SRAG4 em grande parte apenas casos não diagnosticados de COVID19?

Para responder a essa pergunta, é necessário entender como diferentes estados brasileiros fazem sua investigação de SRAGs. Por exemplo, meu estado do Paraná (abaixo) parece rapidamente fazer uma investigação completa em todos os casos de SRAGs e classificá-los, deixando “Em Investigação” apenas os casos notificados nas semanas mais recentes. Notem o enorme número de SRAGs aumentando uma semana antes do vírus ser detectado pela primeira vez no estado. Interessante não?

Estado do Paraná

Outros estados, no entanto, parecem demorar muito mais para concluir sua classificação de casos, como é o caso do Rio de Janeiro. Além disso, note que há uma inversão entre SRAG4 e SRAG-COVID19 (confirmadas por exame RT-PCR). Não se deixe enganar pela queda de SRAG-COVID19 nas semanas mais recentes, isso é apenas atraso desse estado em colocar os dados na plataforma. Tudo indica que os casos continuam subindo rapidamente.

Estado do Rio de Janeiro.

Abaixo uma comparação entre o cumulativo de mortes confirmadas COVID19 pelo banco de dados InfoGripe (azul) e pelos boletins das secretarias estaduais de saúde (amarelo, Painel Coronavírus do MS). A separação horizontal entre as duas curvas indica o atraso médio entre a real data do óbito registrada no InfoGripe e a data em que essa morte é notificada publicamente em um boletim epidemiológico. Os marcadores do eixo horizontal representam semanas. A linha vertical azul indica 14 dias atrás. A queda da curva azul nas últimas duas semanas no RJ indica atrasos na inserção de dados na plataforma InfoGripe.

Com a sugestão de que as SRAG4 pudesse representar em sua maioria casos de COVID19 não diagnosticados, resolvi investigar um pouco mais a fundo. Sei que o estado do Paraná tem disponibilizado testes diagnósticos de forma ágil pelo menos para os pacientes hospitalizados, portanto seria muito estranho se estivéssemos realmente deixando passar tantos casos COVID19 quanto os gráficos e as notícias sugerem.

Creio que essa hipótese pode ser testada ao analisar os dados da InfoGripe

Argumento 1: Se a maior parte das SRAG4 tiver sido testada para COVID19, é menos provável que existam tantos casos de COVID19 ali dentro

Entre as semanas epidemiológicas 10 e 23 foram registradas 9384 notificações de SRAG no Paraná. Dessas, 1298 foram diagnosticadas como COVID19 (13.8%) e 6686 foram diagnosticadas como SRAG4 (Sem diagnóstico específico 71.2%). Os casos hospitalizados de COVID19 representam 19.6% do total de casos COVID19 diagnosticados até agora no estado (6604 no Boletim de 06 de Junho).

Dos casos confirmados de COVID19, apenas 2 (0.15%) não possuem o campo PCR_RESUL preenchido, e 7 registros acusam “exame não realizado”. Portanto 99.3% das SRAG COVID19 mostram realização de teste RT-PCR. Em comparação, dentre os casos de SRAG4 145 pacientes (2.1%) possuem registro faltante nesse campo e 66 constam como “exame não-realizado” (0.99%), logo 96.8% dos casos de SRAG4 foram testados com RT-PCR.

Embora haja uma pequena diferença entre os dois grupos no que tange a realização de testes diagnósticos, essa diferença não é grande o suficiente para pensarmos que haja um enorme contigente de pacientes COVID19 erroneamente classificados como SRAG4 por falta de testes.

Argumento 2: Se o índice de testagem entre os dois grupos for semelhante, uma diferença no momento da coleta do exame será sugestiva para a possibilidade de resultados falso-negativos explicarem casos COVID19 não serem diagnosticados

Plotei a distribuição do intervalo entre o início dos sintomas e a coleta do exame RT-PCR, estratificando por diagnóstico final SRAG4 vs. COVID19. É visível que quase a totalidade dos casos de SRAG4 coleta o exame na primeira semana de sintomas, que é o tempo de maior sensibilidade do teste. Logo, é improvável que coletas fora da janela de oportunidade estejam afetando significativamente os resultados.

Argumento 3: Se as SRAG4 forem em grande parte resultados falso-negativos para COVID19, ao agruparmos todas as SRAGs e analisarmos a taxa de positividade da RT-PCR para SARS-CoV-2, a fração de confirmações COVID19 seria semelhante a sensibilidade geral do teste

Como a sensibilidade da primeira coleta de RT-PCR em paciente hospitalizado com COVID19 é de cerca de 40-50% (veja meu artigo sobre falsos-negativos em RT-PCR), se as SRAG4 fossem em sua maioria COVID19 que tiveram resultados falso-negativos na RT-PCR, essa fração dos casos seria semelhante a fração de falsos-negativos do exame em si (Fração de Falso-Negativos = 1 – Sensibilidade). Um fator complicador nessa análise é que o InfoGripe não informa quantas vezes o pacientes hospitalizado foi testado, e eu sei que muitos pacientes paranaenses foram testados várias vezes até se chegar ao diagnóstico final. Mas usar um valor de 40-50% de positividade parece adequado como valor mínimo.

O gráfico acima contraria essa hipótese, pois vemos que o Paraná possui taxa de positividade nas SRAGs de ~20%, indicando que a grande maioria dos resultados negativos são verdadeiramente negativos. No entanto é preocupante o alto índice de positividade em outros estados, que sugere pouca testagem e grande número de pacientes positivos.

Argumento 4: Se um estado como Paraná (baixo número de casos até o momento, e testes relativamente abundantes) estiver deixando de diagnosticar corretamente tantos casos de SRAG como COVID19, esse padrão de subnotificação deve ser se repetir de forma igual ou pior em estados com menos recursos ou com sistemas de saúde mais sobrecarregados.

Estado do Ceará
Estado do Pará
Estado de São Paulo

Os gráficos acima mostram que é justamente o contrário: estados mais afetados tendem a ter uma equalizaçao ou uma reversão do número de SRAG4 em relação ao número de SRAG-COVID19.

Argumento 5: Se houver um grande número de COVID19 entre as SRAGs, veremos distribuição semelhante entre os dois grupos de métricas que refletem a patofisiologia da COVID19

Coniderando que a COVID19 ainda não possui tratamento específico que altere de forma significativa a progressão da doença, o tempo decorrido entre o início dos sintomas e a morte é em grande parte determinada pela doença em si, apesar de nossos esforços como médicos para oferecer tratamento suportivo. Vemos nos gráficos abaixo que os casos confirmados de COVID19 seguem a distribuição de mortalidade descrito na literatura, enquanto os casos de SRAG4 parecem morrer muito precocemente. Eu interpreto essas diferenças como indicadores de diferentes fisiopatologias, e esperaria que se um grande número de casos de COVID19 estivesse erroneamente dentro das SRAG4, veríamos um deslocamento para a direita desta distribuição.

Mas o que são então as SRAG sem diagnóstico?

Creio que as SRAG sem diagnóstico, pelo menos no estado do Paraná, sejam apenas as doenças cardíacas e respiratórias de sempre, mas que agora estão sendo notificadas como SRAG pois todos estamos alertas para a possibilidade de COVID19. Fora do período pandêmico é muito raro para médicos da emergência notificarem SRAGs, mas agora creio que seja impossível pisar em um hospital ou UPA com sintomas respiratórios e não fazer uma bateria de exames e abrir uma ficha de notificação. Imaginando que estamos notificando praticamente todas as doenças graves (requerem internamento) com manifestações pulmonares, esse número seria provavelmente relativamente constante ao longo das semanas, enquanto o número de casos de COVID19 subiria conforme o número de reprodução efetivo (Rt). Se olhar os gráficos que mostrei, verá que isso de fato ocorre. E quando não ocorrer, é um bom indicativo de que naquele estado realmente exista um número significativo de casos de COVID19 erroneamente classificados como SRAG4.

Eu li os detalhes clínicos de dezenas de casos de SRAG4 no Paraná, e a grande maioria deles são os casos de sempre que vemos nas emergências: exacerbação de DPOC, pneumonias, edema agudo de pulmão, insuficiência renal agudizada, cetoacidose diabética, sepse de qualquer foco, tuberculose, broncoaspiração, etc. De fato, a mortalidade precoce do grupo das SRAG4 indica que provavelmente existam muitos casos de doença cardiovascular aguda sendo notificada como SRAG.

O fato de existir muito mais SRAGs sem diagnóstico do que SRAG-COVID19 apenas indica que, nesse estado, o número de casos graves de COVID19 ainda não ultrapassou o limiar basal de doenças cardiopulmonares que chegam as emergências todos os dias. No entanto, com o processo de reabertura isso tende a mudar nas próximas semanas.

https://transparencia.registrocivil.org.br/especial-covid

O gráfico acima é do portal do registro civil, e mostra que entre 01 de Março e 01 de Junho o número de mortes de causa respiratória no Paraná está relativamente igual. Isso é bastante diferente de outros estados, nos quais o excesso de mortalidade já é bastante significativo, a despeito do atraso dos registros.

Por fim, creio que essas análises podem ser aplicadas em outros estados. Me parece que os estados de SC, RS, MG e MS parecem estar em situação semelhante. Gostaria apenas de deixar claro que isso NÃO é nenhum tipo de estudo científico, apenas um projeto de uma tarde de Domingo. Convido comentários e criticas fundamentadas.

Meu último suspiro na COVID19

Após quase 2 meses dedicados a estudar a COVID19 em todos os seus aspectos, preciso retornar a minha pesquisa do doutorado e deixar a COVID19 para trás. Mas antes de fechar o blog, deixo uma lista de perguntas frequentes e minhas respostas. E também teço alguns comentários sobre as estratégias de controle. Caso tenha alguma dúvida ou queira a referência para algum dado específico, deixe um comentário.

O vírus mata em proporção semelhante a gripe?

Não. O vírus da COVID-19 mata (muito) mais que o conjunto dos vírus que causam a gripe, mesmo quando consideramos o vírus de gripe pandêmico em 2009. Mas infelizmente não sabemos ainda a letalidade exata da COVID19.

Como você pode afirmar que mata mais do que a gripe sem saber exatamente quantas pessoas morrem em decorrência de COVID19?

Várias cidades já foram fortemente atingidos pela COVID19 e o número de mortes de pacientes COVID19 nesses locais em curto espaço de tempo nos dizem que esse é um vírus com letalidade relativamente alta. Não vimos esse tipo de mortalidade e caos sanitário mesmo no auge da pandemia de gripe H1N1 em 2009. Você se recorda de notícias de enterros em valas comuns e caminhões frigoríficos armazenando corpos em outros anos?

Mas por que você não diz um número exato, como “mata 10x mais do que a gripe”?

A verdade é que também não sabemos exatamente qual a letalidade da gripe, então fica difícil comparar as duas infecções. A gripe é uma doença que circula há muito tempo, causada por diversas variantes de um mesmo vírus (Influenza), que sofre mutações frequentes para as quais desenvolvemos anticorpos que são parcialmente ou completamente efetivos. Além disso, temos vacina que também pode conferir proteção parcial a uma nova “cepa” do vírus que venha a surgir. Apenas citar números como 0.1% (CFR) é desconsiderar todas as incertezas em torno de como esses números foram calculados . O fato é que na realidade atual a gripe, mesmo em anos ruins, não leva a sobrecarga dos cemitérios e crematórios. Mas pode ter certeza que de agora em diante os cientistas serão muito mais cuidadosos em tentar calcular adequadamente esses números, até porque essa não será a última pandemia que viveremos.

Qual a letalidade da COVID19?

Depende de como é calculada e de qual população estamos falando. Para começar, temos um cálculo mais simples chamado CFR (case-fatality ratio), que divide o número de mortes pelo número total de pacientes diagnosticados como COVID19. Países que fazem muitos testes diagnósticos em casos leves/moderados irão identificar mais casos confirmados, e “diluir” as mortes em um contingente maior, reduzindo a letalidade (CFR) aparente.  Outros locais, como o Brasil, vão testar apenas os casos graves e assim terão um denominador menor, inflando a estimativa CFR de letalidade. Logo, mesmo que a letalidade real seja exatamente a mesma em dois locais, a escolha de quem é testado e a disponibilidade desses testes irá afetar os números oficias divulgados. Outro fator que afeta os cálculos é a estrutura demográfica da população estudada: como a COVID19 é muito mais grave em idosos do que em jovens, a letalidade geral dependerá da proporção de idosos no local estudado. E obviamente a letalidade também depende da qualidade do atendimento médico e dos recursos hospitalares disponíveis na região. Cem pacientes de exatos 70 anos diagnosticados e tratados em Parintins (AM) não terão a mesma letalidade que o mesmo número de pacientes de mesma idade diagnosticados e tratados em Zurique, na Suíça.

Esses cálculos até agora ignoraram um segmento importantíssimo: um grande número de pessoas infectadas que não apresentam nenhum sintoma ou que tiveram sintomas tão leves que nunca buscaram atendimento médico. Até meados de Março não sabíamos se esse número era grande ou pequeno em proporção ao número de casos confirmados. Também não sabíamos se essas pessoas podiam transmitir a doença mesmo não tendo sintomas. Estaríamos diante de uma pirâmide de gravidade, com uma larga base de assintomáticos? 10 assintomáticos para sintomático? Ou mil para um?  Ou eram os assintomáticos casos isolados, raros, e que não ofereciam risco de transmissão. Tínhamos muitas dúvidas e poucas respostas. Felizmente hoje temos muito mais dados: sabemos que cerca de 50% de todos os infectados nunca desenvolvem sintomas, ou seja, diagnosticamos oficialmente apenas uma minoria de todos os infectados. Quando calculamos o número de mortes dividido pelo número total de infectados, chegamos a outra estimativa de letalidade chamada IFR (infection-fatality ratio). Essa é a medida mais importante, mas obviamente é também influenciada pela estrutura demográfica da população e pela qualidade do atendimento médico disponível. Mas em geral, a letalidade IFR da COVID19 é de algo entre 0.5% e 1% de todos os infectados se tratamento médico de qualidade estiver disponível a todos que precisarem.

Então menos de 1% dos infectados irá morrer. Isso justifica esse caos todo?

Isso é uma questão para os gestores e para a sociedade decidirem, quanto vale cada vida e quantas mortes são aceitáveis. Mas embora “apenas” 1% dos infectados morram apesar dos melhores cuidados médicos, a realidade é que 5 a 10% de todos os infectados desenvolvem sintomas graves que necessitam de internamento hospitalar e oxigênio. Para que tenhamos 1% de mortalidade, precisamos atender bem esses 5-10% de paciente graves, salvando 80-90% deles com medicina de qualidade. Simplesmente não existe capacidade hospitalar para atender tanta gente.

Os hospitais brasileiros sempre foram superlotados. Por que toda essa atenção agora para achatar a curva da COVID19 para evitar a sobrecarga de hospitais?

Sim. Hospitais brasileiros são cronicamente sobrecarregados, isso é fato conhecido. Um hospital que esteja funcionando a 150% de sua capacidade máxima é algo absolutamente caótico. Mas o atraso de 12 horas no tratamento de um paciente com a perna quebrada, um corte na cabeça ou mesmo sintomas de dengue raramente tem potencial de levar o paciente a morte. As verdadeiras emergências, aquelas para as quais uma rápida intervenção faz a diferença entre a vida e a morte, está geralmente disponível em praticamente todos os hospitais brasileiros, apesar da sobrecarga. Dificuldade para respirar, dor no peito, sinais de derrame cerebral, pressão baixa ou alta demais são critérios de triagem que fazem com que um paciente seja atendido imediatamente, passando na frente das centenas de pessoas que aguardam na fila há 12 horas para serem atendidos por sintomas de dengue. Ou seja, embora hospitais brasileiros sejam cronicamente sobrecarregados, sabemos que se REALMENTE tivermos uma emergência, quase sempre seremos atendidos com rapidez e com um mínimo de recursos básicos. A diferença, no caso da COVID19, é que um grande número de pacientes apresenta o mesmo sintoma e precisam ao mesmo tempo de um mesmo recurso: OXIGÊNIO. Para piorar, esses pacientes que chegam com falta de ar vão continuar internados por 1-6 semanas até saírem do hospital, vivos ou mortos. Em comparação, um paciente em crise de asma grave pode ser tratado e ter alta do hospital em poucas horas. Portanto, a sobrecarga crônica dos hospitais brasileiros é de grande volume (de pacientes) e baixa gravidade (dos problemas atendidos), enquanto a sobrecarga aguda da COVID19 é de grande volume e alta gravidade.

E qual o tamanho da sobrecarga possível pela COVID19?

Da ordem de 250 vezes a capacidade hospitalar máxima caso não fizéssemos absolutamente nada para conter a pandemia (nenhuma restrição social e ninguém mudasse seus hábitos usuais). No cenário mais provável de um cenário semelhante ao “isolamento vertical”, ainda estaríamos falando de uma sobrecarga de 8 vezes a capacidade máxima hospitalar disponível. Ou seja, mesmo supondo que todos os recursos hospitalares existentes fossem exclusivamente dedicados a pacientes COVID19, sete em cada 8 pacientes morreriam na porta do hospital.

Achatar a curva

Em minha opinião, toda a propaganda em torno da idéia de achatar a curva de casos foi incorreta. Eu mesmo compartilhei gráficos bonitos sobre isso, pois veiculam um conceito complexo de forma simples. No entanto, descobrimos em meados de Março que o conceito estava errado, mas para manter o público (europeu) engajado, a estratégia de comunicação foi mantida e funcionou bem. Infelizmente, em um país como o Brasil, essa estratégia foi desastrosa.

Achatar a curva implica aceitarmos que praticamente toda a população será infectada, e que se pudermos diluir as infecções ao longo do tempo poderemos dar o melhor atendimento médico possível a todos que precisarem. Isso era a estratégia de mitigação que o Reino Unido seguia inicialmente: “as infecções são inevitáveis, mas um colapso hospitalar pode ser evitado se protegermos certos segmentos da população e mudarmos alguns hábitos sociais, mas em geral a sociedade continua funcionando. Quando >50% da população se infectar, poderemos retornar a vida normal”. Nas estratégias de mitigação a curva de casos é ascendente até que o limiar de imunidade de rebanho (~60-70% da população) seja atingido, e demora-se muito tempo até chegarmos até esse ponto. Essa era uma estratégia válida, embora controversa, diante dos dados científicos disponíveis à época. Na metade de Março novos dados surgiram indicando que essa estratégia, mesmo se perfeitamente executada, levaria a um número incrivelmente elevado de mortes no Reino Unido ao longo de dois anos, e mesmo assim ocorreria colapso hospitalar por alguns meses. O governo britânico julgou inaceitável essa perda de vidas e, a partir desse momento, uma mudança radical de política pública aconteceu.

Sai a mitigação, entra a supressão

A mitigação não era mais uma alternativa viável, e a única medida adequada seria a supressão: bloquear imediatamente a circulação do vírus na sociedade, usando todas os artifícios possíveis para o mais rapidamente possível colocar a curva de casos diários em trajetória descendente. Para isso seria necessário parar o funcionamento normal da sociedade por alguns meses, sendo o achatamento da curva portanto uma consequência, e não um objetivo em si. Como uma parcela significativa da população trabalha em setores essenciais — saúde, segurança, produção e distribuição de alimentos — que não podem ser simplesmente suspensos, a maior parte da população precisaria fazer um isolamento muito intenso por alguns meses para que a supressão da circulação do vírus fosse atingida. Portanto o objetivo não era o achatamento da curva e sim o esmagamento da curva, trazendo o número de casos a quase zero.  Durante esse processo de intensas restrições sociais, a menor circulação de pessoas nas ruas traz o efeito benéfico adicional quase imediato de aumentar a capacidade do sistema de saúde ao reduzir o número de acidentes de trânsito e acidentes de trabalho (mais da metade dos leitos de UTI brasileiros são ocupados por vítimas de acidentes de trânsito, em geral motociclistas). E o cancelamento de cirurgias eletivas (ortopédicas, ginecológicas, plásticas, etc.) libera ainda mais leitos hospitalares. Assim o governo ganharia tempo para equipar o sistema de saúde pública com EPIs, ventiladores, leitos hospitalares extras, treinamento de equipes e principalmente desenvolvimento e ampliação da rede de testes diagnósticos. Durante esse processo, a ciência estudaria o vírus e a doença, testaria novos medicamentos e começaria o processo de produção de vacinas.

Mas por que você acha que a estratégia de “achatar a curva” foi desastrosa no Brasil?

Pois a população geral entendeu que precisaria manter o isolamento social até o surgimento de uma vacina, e de imediato “jogaram a toalha”. Uma parcela significativa da população e de governantes colocou na cabeça que tal proposta era inviável e que teríamos que aceitar a morte de milhares de cidadãos (“Vai morrer gente. E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?”). E mesmo a população, que deveria cobrar de seus governantes pacotes de ajuda financeira, entrou na onda de “O Brasil é um país pobre, não temos como financiar isso”. Creio que se uma estratégia de comunicação clara tivesse sido realizada inicialmente, explicando a população que sacríficos seriam necessários por 2 ou 3 meses, que ajuda financeira estaria disponível e que passaríamos por tudo isso juntos e sairíamos mais fortes lá na frente…  estaríamos em uma situação muito diferente hoje.

Mas quanto menos casos tivermos agora, mais pessoas continuarão suscetíveis e mais casos teremos em uma segunda onda. Não estamos trocando seis por meia dúzia? Faz sentido essa estratégia de supressão?

Faz sentido por várias razões:

  1. Mesmo a mais restritiva medida de mitigação (“isolamento vertical”) ainda leva a colapso hospitalar de várias vezes a capacidade máxima do sistema de saúde, matando muito mais pessoas no total.
  2. Sem supressão, incorremos no custo da oportunidade de ter salvo milhares de vidas com terapias que serão descobertas alguns meses no futuro. 
  3. Quanto mais estudamos o vírus e a doença que ele causa, mais percebemos que não parece ser uma síndrome benigna quanto pensávamos. Os sintomas não são apenas respiratórios, e já começamos a ver indícios de que sobreviventes podem ter sequelas permanentes.
  4. O tempo que ganhamos agora é utilizado para desenvolver estudos sobre o vírus/doença, equipar sistemas de saúde e desenvolver políticas públicas que permitirão um retorno seguro a uma vida parecida com a que tínhamos antes.

Os cientistas dizem que uma vacina só estará disponível daqui pelo menos 12 meses. Não temos como ficar trancados em casa por tanto tempo. Vamos morrer de fome.

Ninguém pediu que ficássemos trancados em casa até que uma vacina estivesse disponível, mas precisamos nos isolar até que tenhamos um esmagamento da curva e condições de retornarmos cuidadosamente a um grau de semi-normalidade. Não só o número de casos precisa estar em curva descendente (indicativo de que as restrições estão funcionando), mas também precisamos ter capacidade de diagnosticar novos casos precocemente e rastrear e isolar contatos recentes desses casos. Isso significa desenvolver uma grande rede de laboratórios capazes de fazer dezenas de milhares de testes de alta complexidade por dia e recrutar um exército de funcionários para as secretarias municipais de vigilância epidemiológica para fazer investigação, rastreio e bloqueio de cada novo caso. Seria de nosso interesse como cidadãos, mas também do interesse do governo como fiador de uma economia deprimida, que isso fosse feito da forma mais rápida possível para podermos retornar a uma semi-normalidade em um período de 6-12 semanas.

As empresas brasileiras não tem caixa para ficarem paradas por 2-3 meses. As famílias brasileiras não tem reservas financeiras para ficar sem trabalhar por 2-3 meses. Se eu não trabalhar hoje, eu não tenho como comprar comida.  Como esperar que as pessoas fiquem em casa?  

Para que as pessoas fiquem em casa, é imperativo que haja comprometimento do governo em financiar esse período “improdutivo”. Literalmente o governo federal precisa pagar pelo menos parte do salário da maior parte dos trabalhadores para que eles possam ficar em casa. E precisa ter pacotes de auxílio as empresas para evitar demissões em massa e quebradeira geral. É uma situação extremamente difícil e custosa, mas não existe mágica e precisa ser feita.

O Brasil é um país pobre, não temos a mesma capacidade de países ricos.

As maiores economias do mundo tiveram que usar suas reservas e imprimir mais dinheiro para conseguir bancar os salários das pessoas que ficam em casa. E tiveram que dar incentivos aos bancos para que emprestem dinheiro a juros baixíssimos a empresas, inclusive assumindo o risco de calote. Essa conta será paga pelas próximas gerações, assim como gerações pagaram os custos da 2a guerra mundial. A desculpa de “somos pobres demais para lutar” não é válida na pandemia, assim como não é válida em uma situação de guerra. Os países europeus declararam guerra ao coronavírus precocemente, e entenderam que esses custos gigantescos são necessários. Mesmo nossos vizinhos Argentina, Paraguai, Uruguai e Chile, em situação fiscal semelhante ou pior, tomaram as medidas necessárias e hoje colhem o sucesso de um controle sanitário. O problema no Brasil é a falta de foco. Ao tentar ter dois pássaros na mão, acabamos com nenhum. A economia frangalha ao mesmo tempo que a epidemia corre descontrolada. Somamos um caos sanitário a uma recessão econômica, e ignoramos o fato de que a recessão será global e longa pois o mundo não será mais o mesmo. Para piorar, no melhor estilo Tiririca, adicionamos ao mix uma dose generosa de grave confusão política-institucional no pior momento possível. Essa é a receita do caos. 

O Brasil fez “quarentena” e o número de casos continua a subir. Isso não é sinal de que a quarentena não funciona?

O isolamento que precisávamos ter feito era mais intenso e mais prolongado do que foi efetivamente feito. Como mencionei antes, como cerca de 30% da população trabalha em setores ditos essenciais, os outros 70% precisam fazer um isolamento extremamente bem feito para que seja efetivo. As pessoas precisam viver dentro de sua bolhas familiares com contato externo praticamente nulo durante todo o período. Isso envolve não encontrar familiares ou amigos por várias semanas. E isso tem que ser seguido a risca. Isso não foi feito no Brasil, a não ser por uma pequena parcela da população. O isolamento com objetivo de supressão da circulação do vírus é algo que, se não for seguido por pelo menos 60-70% da população, não é efetivo. Os índices de mobilidade mostram que as pessoas cansaram rapidamente, provavelmente induzidas por líderes políticos e sociais, que mantinham discurso destoante do resto do mundo. Na época que os isolamentos começaram, tínhamos poucos casos no Brasil, e a contenção era relativamente fácil. Tudo o que precisávamos fazer era ficar em casa, e tudo o que o governo precisava fazer era coordenar uma campanha de “Fique em Casa. Salve Vidas” e financiar esse período “improdutivo” enquanto trabalhava para ampliar o sistema de saúde, testes e rastreio.

Mas algum isolamento é melhor que nenhum isolamento, certo?

Sim e não. Quanto maior o grau de isolamento, mais devagar será a progressão da epidemia na população. Então o isolamento feito até agora foi muito importante para atrasar o “pico da epidemia” e assim ganhamos alguns meses que nos permitiram comprar EPIs e ampliar a capacidade hospitalar em quase todas as regiões do país. Mas como diversos estudos apontam, não foi intenso o suficiente para que a supressão fosse atingida. Ou seja, achatamos a curva sem esmagá-la, e agora entramos no período onde o número crescente de casos chega próximo do limite da capacidade hospitalar nos maiores centros urbanos do país. De forma muito triste vemos que a capacidade máxima hospitalar foi ultrapassada em diversas regiões do norte e nordeste do país, com grande número de mortes até o momento. Como não atingimos a supressão (definida pelo número de reprodução R menor que 1), continuamos em crescimento exponencial. Com R maior que 1, essa semana temos mais pessoas com infecção ativa do que semana passada, e semana que vem teremos mais do que agora. Isso significa que após mais de 2 meses de restrições sociais, em praticamente todas as cidades do país o número de infecções ativas agora é superior ao que era no dia em que entramos em “quarentena”. Estamos “piores” e mais próximos do colapso sanitário hoje do que estávamos antes de entrarmos em quarentena. Todo esse custo social e econômico, para indivíduos e empresas, aconteceu sem que exista um ganho real. Sim, evitamos centenas de milhares de mortes nos últimos 2 meses, mas essas mortes terão sido apenas adiadas caso não tomemos logo medidas que visem atingir a supressão da transmissão. 

Mas os hospitais da minha região estão vazios. Não parece que o colapso esteja próximo.

Isso apenas indica que sua região ainda não possui um número grande de infecções ativas, mas não quer dizer que a epidemia esteja controlada. Para explicar essa situação geradora de falsa segurança, é necessário conhecer alguns dados:

  1. O número de reprodução R é uma estimativa da taxa de propagação da infecção. No começo da pandemia na China consideramos que uma pessoa infectada em média transmitiu a doença para mais 3 pessoas (R = 3) . Atualmente no estado do Paraná estimamos que R = 1.2, ou seja, 100 pessoas transmitirão para outras 120 pessoas (uma taxa de crescimento de 20%)
  2. Cada ciclo de infeções dura cerca de uma semana. Por exemplo, 100 infectados ativos na semana passada geram 120 novos infectados ativos na semana atual.
  3. O tempo de incubação (período entre o momento da infecção e o aparecimento dos primeiros sintomas) é de 5 dias.
  4. Em média demoram 8 dias entre o aparecimento dos primeiros sintomas e o agravamento do quadro a ponto do paciente buscar atendimento médico por falta de ar.
  5. Pacientes ficam internados 2 semanas até que morram ou recebam alta.
  6. A cada 20 pacientes infectados, 1 paciente precisará ser hospitalizado. Mas há grande diferença entre faixas etárias: entre os jovens 20-29 anos esse número é de 1 a cada 100, enquanto entre os idosos de mais de 60 anos cerca de 1 a cada 7 precisam ser internados.

Com isso em mente, podemos entender que, na sua região, o número de pessoas atualmente hospitalizadas por COVID19 depende do número de pessoas com infecções ativas duas semanas antes. Logo, em uma cidade com 100 leitos hospitalares disponíveis, se a taxa crescimento da infecção é de 20%  (R = 1.2) por semana, atingiremos a capacidade hospitalar máxima atual quando cruzarmos o número de 1200 infecções ativas 2 semanas atrás. Sei que é confuso, mas caso queira entender melhor desenhe a projeção de infecções ativas semana a semana. Na semana que chegarmos em 1200 infecções ativas, teremos cerca de 75% dos leitos hospitalares ocupados. Na semana seguinte teremos 1440 infecções ativas e 91% dos leitos ocupados. E na seguinte chegaremos a 110% dos leitos ocupados e 1728 infecções ativas. Logo, nosso índice de hospitalizações hoje é reflexo das infecções adquiridas 2 semanas atrás. De forma prática, ao multiplicar o valor de R pelo número de leitos hospitalares disponíveis vezes 10, encontraremos o limiar de infecções ativas que quando cruzado levará o hospital da sua região a atingir capacidade máxima dentro de 2 semanas. Infelizmente, quando atingido esse limite, é necessário impor restrições sociais muito intensas (‘lockdown’) por período prolongado até que o número de casos graves caia o suficiente. (Figuras 1 e 2).

As cores associam as infeções ativas de uma semana com as hospitalizações 2-3 semanas depois.
As cores associam as infeções ativas de uma semana com as hospitalizações 2-3 semanas depois.

Podemos entender então que (felizmente) sua região ainda não está próxima de atingir esse limiar. Apenas para fins de cálculos, se partíssemos de apenas um único caso importado de COVID19 para a região, demoraria cerca de 39 semanas para que o número de 1200 infecções ativas fosse atingido caso um R = 1.2 fosse mantido durante todo o período (log1.21200).

Como você explica a queda do número de hospitalizações e mortes em Manaus?

Essa é uma ÓTIMA pergunta, para a qual honestamente não tenho uma resposta definitiva. Mas para evitar a propagação de desinformação baseada em praticamente nada, vou deixar públicas minhas três melhores hipóteses:

  • Hipótese 1: A população realmente tomou medidas efetivas de distanciamento social e prevenção e efetivamente conseguiu reduzir o R para menos de 1. Acho essa hipótese improvável com os dados de mobilidades que vimos, mas também aceito que nossas estimativas de R para a regiao são muito ruins devido aos dados públicos ruins, a falta de testes, e provavelmente temos baixa captura de dados de mobilidade naquela região.
  • Hipótese 2: Imunidade de Rebanho efetiva foi temporariamente atingida em Manaus. O limiar (L) para imunidade de rebanho é calculado como L = 1 – 1/R0 . Ou seja, quando falamos em 60-70% estamos nos referindo a situação de retorno a normalidade social quando o Rt= R0 = 3.0. Mas como o R efetivo atual (Rt) está em em algum lugar entre 1.0 e 1.5, o limiar de imunidade de rebanho seria portanto de no máximo 33%. Acho essa uma hipótese muito provável, mas é claro que essa “segurança” da imunidade de rebanho só se mantém enquanto as medidas restritivas sociais todas se mantiverem. Com a flexibilização, sobe o Rt e sobe a fração de imunidade de rebanho, criando nova onda de infecções e mortes.
  • Hipótese 3: Uma mistura das hipóteses 1 e 2 adicionada de sociologia de redes sociais (social networks). Creio que em diferentes círculos sociais (em estratos sócio-econômicos) da população do AM, existam taxas extremamente discrepantes de infecção pelo SARS-CoV-2. E como essas redes sociais interagem pouco entre si, e possuem diferentes taxas de transmissão, acabamos com clusters de alto índice de infecção e clusters de baixo índice de infecção. Isso é fácil de ser testado com estudos sorológicos em diferentes estratos sociais. E minha maior suspeita é a de que a maior taxa será encontrada nas pessoas que tem envolvimento direto/indireto com o transporte de pessoas/mercadoria pelo rio Amazonas.
Criei essa visualização para analisar a progressão de casos na região.

Qual deve ser então o critério para que possamos retornar a (semi) normalidade?

Creio que os 5 critérios usados pelo governo do Reino Unido são simples e lógicos. Para poder flexibilizar as regras de isolamento (que foram efetivamente seguidas com grande apoio da população), os seguintes critérios precisavam ser cumpridos:

  1. O sistema de saúde tem capacidade para receber pacientes COVID19
  2. Uma queda consistente no número diário de mortes
  3. Dados confiáveis que demonstrem que a epidemia está regredindo para níveis toleráveis
  4. Logística assegurada de insumos hospitalares, EPIs e testes diagnósticos
  5. Confiança de que mudanças não acarretarão uma segunda onda catastrófica

Obrigado por ter acompanhado. Caso tenha interesse, esses são meus outros textos nesse blog.

O que significa o resultado de um teste rápido para COVID19?

Muito tem se falado sobre o uso de testes rápidos para COVID19. Mas que testes são esses? 

Basicamente são testes semelhantes a testes de gravidez, que tem como objetivo detectar se a pessoa testada possui anticorpos contra o coronavírus SARS-CoV-2. Semelhante a um teste de glicemia em pacientes diabéticos, uma gota de sangue extraída do dedo do paciente é colocada em contato com uma fita reagente que, após alguns minutos, muda de cor indicando a presença ou ausência dos anticorpos testados, como visto na imagem abaixo. 

Esses testes estão sendo produzidos por centenas de diferentes empresas nacionais e estrangeiras, muitas delas startups. Mesmo nos EUA, com sua toda poderosa FDA, esses testes foram isentos do requerimento de validação pela agência antes de serem usados na população. No Brasil não é diferente, e já vemos farmácias, clínicas e até mesmo cidades usando esses testes amplamente. [Lista de testes aprovados pela ANVISA]

Toda vez que o Brasil toma a dianteira de uma situação internacional, temos que nos perguntar: estamos sendo pioneiros ou ignorantes? Há uma razão porque outros países não estão fazendo testes rápidos em massa. Alguns exemplos:

  • O Reino Unido comprou 2 milhões de testes rápidos chineses, ao custo de 20 milhões de dólares e uma enorme operação logística para trazê-los ao país. No entanto, os testes de validação feitos aqui na Universidade de Oxford mostraram que os testes não funcionavam de forma adequada para serem utilizados na pandemia. Esses testes estão agora acumulando pó em algum depósito, e o caso se tornou uma grande vergonha para o governo. 
  • A Espanha comprou 640 mil testes rápidos chineses, que logo mostraram graves falhas: supostamente tinham sensibilidade de apenas 30% em pacientes que eram sabidamente positivos. Rapidamente foram todos retirados de circulação e o governo agora tenta devolver os testes ao fabricante.

Ou seja, se nem governos de países ricos conseguem testes que funcionem, é de suspeitar que sua farmácia do bairro ou sua prefeitura esteja oferecendo testes realmente confiáveis. Portanto é imprescindível que seja realizada validação cuidadosa de todos os testes que são oferecidos a população. 

Com este objetivo, um grande grupo de pesquisadores da UCSF acaba de divulgar os resultados (pre-print) de uma comparação entre 10 diferentes “marcas” de teste rápido sorológico para COVID19. Os detalhes da pesquisa podem ser lidos no site do estudo, mas alguns pontos importantes são:

  • No cenário de maior eficácia do teste (>20 dias decorridos desde o início dos sintomas em pacientes sabidamente COVID19+), a sensibilidade dos testes avaliados (IgM e/ou IgG+) variou de 81.2% a 100%, com média de 89%.
  • No cenário de maior utilidade clínica possível (primeiros 1-5 dias do inícios dos sintomas em pacientes sabidamente COVID19+), a sensibilidade dos testes avaliados (IgM e/ou IgG+) variou de 18.5% a 44.4%, com média de 32% 
  • Nos cenários onde seu uso seria clinicamente indicado (6-15 dias após início dos sintomas em pacientes sabidamente COVID19+), a sensibilidade dos testes avaliados (IgM e/ou IgG+) variou de:
    • 6-10 dias: 54.29% a 77.8% (Média de 65%)
    • 11-15 dias: 71.4% a 85.7% (Média de 80%)

Usando amostras de sangue coletadas em 2018, muito anteriores a pandemia de COVID19, os pesquisadores puderam avaliar a especificidade desses 10 testes.  Ou seja, de todos os pacientes que sabemos nunca terem tido COVID19, a proporção que foi corretamente identificada como teste negativo (ausência tanto de IgM como de IgG na amostra). Nesse estudo, a especificidade dos testes variou de 84.3% a 100%, com média de 94%. 

Os pesquisadores também aplicaram os testes em amostras de sangue coletadas após o início da pandemia, mas de pacientes sintomáticos que tiveram teste RT-PCR negativo para COVID19 e/ou que tiveram resultado positivo para outro vírus respiratório. Os testes deram resultado positivo para COVID19 IgM ou IgG entre 0% e 27% das amostras. Esse é um resultado difícil de avaliar, tendo em mente a baixa sensibilidade dos testes RT-PCR e a variável taxa de coinfecção de outros vírus respiratórios e SARS-CoV-2.

Das 10 marcas avaliadas, os dois testes rápidos com maior especificidade, Wondfo (99.1%) e Sure (100%), tinham as seguintes sensibilidades: 

Tempo decorrido do início dos sintomasWondfo (99.1%)Sure (100%)
1-5 dias40%18.5%
6-10 dias66.7%54.3%
11-15 dias81.8%71.4%
16-20 dias81%71.4%
>20 dias81.8%90.9%

E as três marcas com as maiores sensibilidades no momento de maior utilidade clínica (1-5 dias), tinham as seguintes especificidades:

DeepBlue (Sens 44.4%)Bioperfectus (Sens 40.7%)Wondfo (Sens 40%)
84.3%95.2%99.1%

Com esses números em mente, temos que entender que o significado do resultado de um teste clínico depende da prevalência da doença na população estudada (probabilidade pré-teste). Diferente de estudos laboratoriais de validação, em que pesquisadores sabem antecipadamente se as amostras eram ou não de pacientes COVID19, no dia-a-dia usaremos os testes em contextos de prevalência de doença bastante diferentes: 

  1. Em uma amostra populacional majoritariamente assintomática com intuito de pesquisa e/ou guiar políticas públicas
  2. Em trabalhadores assintomáticos, para detectar imunidade ao vírus e permitir retorno seguro precoce ao trabalho
  3. Em pacientes ambulatoriais sintomáticos para rapidamente confirmar ou afastar COVID19
  4. Em pacientes hospitalizados para diagnosticar ou afastar COVID19

Vamos analisar cada um desses cenários usando as informações do estudo que revisei. Para efeitos didáticos começarei com estudos populacionais onde temos mais dados até o momento.

Amostra populacional de uma cidade/estado/país 

Estudos como esses são muito importantes para sabermos qual proporção da população geral já entrou em contato com o vírus, e assim podemos calcular com mais precisão a taxa de letalidade do vírus e também guiar políticas públicas relativas a medidas de isolamento e distanciamento social. Por exemplo, caso um estudo assim descobrisse que no dia de hoje (26 Abril 2020) em média 70% da população brasileira já desenvolveu anticorpos contra o SARS-CoV-2, isso indicaria tanto que letalidade do vírus é extremamente baixa (~5000 mortes / 140 milhões = 0.0036%) quanto que a transmissão do vírus será muito mais lenta daqui para frente (devido a efeito rebanho). Com dados como esses, gestores provavelmente seriam rápidos em retirar as atuais medidas de isolamento e distanciamento social. Mas um resultado de 1% de soropositividade, ao contrário, nos diria que ainda há muito estrago pela frente, que a mortalidade é em torno de 0.25% e que as medidas de isolamento provavelmente precisam ser intensificadas e mantidas por muito mais tempo. 

Imaginemos um cenário hipotético onde todas as 10.000 pessoas de uma cidade são testadas com um teste rápido qualquer. Temos que imaginar que todos os que estão atualmente infectados ou já foram infectados, teremos pessoas assintomáticas que foram infectadas 40 dias atrás, outras sintomáticas que foram infectadas 1 semana atrás e assim por diante. Como vimos anteriormente, a sensibilidade dos testes aumenta com o tempo decorrido desde o início dos sintomas. Mas imaginemos então que nosso teste tenha sensibilidade média de 85% e especificidade de 95%. 

Caso fosse possível saber de antes da realização do teste que apenas 1% da população já havia sido infectada pelo vírus, quais seriam os resultados desse teste?


INFECTADOS (100)NUNCA-INFECTADOS (9900)Total (10000)
TESTE POSITIVO85 (85% de 100)495 (5% de 9900)580 = 5.8%
TESTE NEGATIVO15 (15% de 100)9405 (95% de 9900)9420 = 94.2%

Vemos que em uma população com real 1% de prevalência, o teste daria um resultado 5.8 vezes maior! Além disso, caso o resultado de cada teste fosse anunciado para o indivíduo no momento da realização, teríamos a seguinte situação:

  • Caso resultado positivo neste teste rápido, a chance deste resultado estar ERRADO é de 85.3% (=85/580)
  • Caso resultado negativo neste teste rápido, a chance deste resultado estar CORRETO é de 99.8% (=9405/9420)

Logo, precisamos ter muito cuidado ao extrapolarmos dados “crus” como esses para populações inteiras. E ainda mais cuidado para retornarmos os resultados de testes individuais para a população. É fácil perceber que pequenas diferenças na especificidade do teste levam a grandes diferenças no resultado final. No caso acima, cada 1% a mais de especificidade leva a uma redução de 17% na estimativa de prevalência populacional. Esses valores não são constantes, e a acurácia do teste aumenta conforme cresce a real prevalência da doença na população.

Por isso, estudos populacionais bem realizados fazem correções matemáticas usando valores conhecidos de sensibilidade e especificidade do teste utilizado. Mas mesmo esses valores são difíceis de obter, e seus resultados são frequentemente questionados. Por exemplo, no recente (bastante criticado) estudo pre-print de Stanford que testou 3300 pessoas no condado de Santa Clara, 50 pessoas (1.5%) tiveram resultado positivo para IgM ou IgG no teste rápido da marca Premier. 

Teste Rápido “Premier”FabricanteGrupo de StanfordGrupo UCSF
Sensibilidade91.8%67.6%Máx 90.9% (>20 dias)
Especificidade99.%100%97.2%

Na tabela acima vemos as características do teste como informadas pelo fabricante e quando analisadas por dois grupos independentes de pesquisa. Os experimentos que geraram esses valores são ligeiramente diferentes. Por exemplo, o grupo de Stanford calculou a sensibilidade usando 37 amostras de pacientes COVID19+ (RT-PCR) que também tinham resultado IgM+ ou IgG+ em um teste laboratorial ELISA desenvolvido por eles. A especificidade foi calculada utilizando 30 amostras anteriores a pandemia de COVID19. O grupo da UCSF utilizou amostras de sangue de 108 pacientes pré-COVID19 para cálculo da especificidade. Já para a sensibilidade, é um pouco mais complexo: 129 amostras de pacientes RT-PCR+ para COVID19 (mas sem saber previamente o resultado de IgM e/ou IgG) foram utilizadas, mas divididas conforme o tempo desde o início dos sintomas. Na faixa de >20 dias, apenas 11 amostras foram testadas (10 positivas), enquanto na faixa de 11-15 dias foram testadas 35 amostras (29 positivas). E para título de comparação, o teste ELISA desenvolvido pela equipe da UCSF identificou como positivas 32/35 [91.4%] das amostras coletadas entre 11-15 dias, mas apenas 9/11 (81.8%) das coletadas >20 dias. Confuso, não? Só com estudos mais robustos, com número muito maior de amostras, teremos maior confiança nos resultados dos testes.

Mas com tantos testes diferentes inundando o mercado, especialmente em países com menor regulação como o Brasil, a chance de resultados errôneos é muito grande. 

Trabalhadores assintomáticos para indicar retorno seguro ao trabalho

O uso de testes rápidos em trabalhadores de determinados setores tem sido aventado como uma possibilidade de reabrirmos a economia de forma mais precoce, colocando os já “imunes” para trabalhar, já que teriam risco baixo de adoecerem ou transmitirem COVID19. No entanto, não temos ainda nenhuma comprovação de que o resultado positivo de presença de anticorpos IgM e/ou IgG ofereça real imunidade contra o coronavírus. A OMS alerta que, no momento, essa é uma idéia arriscada, sem comprovação, e que pode aumentar a transmissão do vírus, e recomenda que isso não seja feito. Mas mesmo que os anticorpos detectados oferecessem imunidade suficiente, o teste provavelmente não forneceria resultados corretos. 

Podemos imaginar trabalhadores assintomáticos como uma amostra representativa da população geral (exceto se forem trabalhadores da área da saúde, que provavelmente possuem maiores taxas de infecção). Logo se assumirmos uma prevalência de 1% na população geral como expliquei na seção anterior, usando resultados positivos no teste rápido para indicar retorno ao trabalho, 85.3% dos trabalhadores que retornassem não seriam de fato imunes e estariam sendo colocados em risco com base em resultados falso-positivos. 

Pacientes ambulatoriais nos primeiros dias de sintomas compatíveis com COVID19

A idéia nesse contexto seria fazer um diagnóstico rápido (em menos de 30 minutos), sem necessidade de sobrecarregar os laboratórios de biologia molecular com testes de RT-PCR. Isso facilitaria o trabalho das autoridade sanitárias em rapidamente isolar e monitorar casos confirmados, e iniciar busca ativa de contatos para fazer o bloqueio das cadeias de transmissão. Pacientes com sintomas respiratórios tem prevalência de infecção por SARS-CoV-2 muito superior a média da população, mas não sabemos qual o número com exatidão. Vamos supor que de todos os pacientes com sintomas respiratórios recentes que cheguem ao consultório de um determinado plano de saúde, 20% estejam de fato apresentando sintomas de COVID19 . Se usássemos o melhor teste rápido para diagnóstico precoce (marca DeepBlue para 1-5 dias do início dos sintomas), teríamos 44% de sensibilidade e 84% de especificidade. 


INFECTADO (200)NUNCA-INFECTADO (800)Total (1000)
TESTE POSITIVO88 (44% de 200)128 (16% de 800)216 = 21.6%
TESTE NEGATIVO112 (56% de 100)672 (84% de 800)784 = 78.4%

Portanto a cada 1000 pacientes testados, teríamos 216 resultados positivos e 784 resultados negativos. 

O valor preditivo positivo de tal teste seria de 40% (=88/216), o que indica que de cada 5 pacientes com teste rápido positivo, 3 (60%) seriam falsos positivos. Em nosso país esses pacientes possivelmente receberiam hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, zinco, vitamina D e quiçá corticóides. 

O valor preditivo negativo do teste seria de 85% (=672/784), indicando que de cada 20 pacientes com teste rápido negativo, 3 (15%) seriam falsos negativos. Sem orientação correta, esses pacientes podem ser falsamente induzidos a pensar que podem retornar a atividades sociais normais. 

Cidades como Brasília já começaram a aplicar testes rápidos para pacientes sintomáticos. Além disso, muitas farmácias, clínicas e laboratórios brasileiros já estão oferecendo tais exames diretamente a população, sem maiores explicações sobre o que um resultado positivo ou negativo realmente significa. 

Pacientes hospitalizados com quadro clínico compatível com COVID19

Este é o cenário ideal para realização do teste, devido a alta prevalência atual da infecção pelo SARS-CoV-2 em pacientes com quadro respiratório grave. Além disso, pacientes COVID19 normalmente internam ao final da primeira semana de sintomas, quando ocorre agravamento do quadro respiratório, aumentando as chances de que existam anticorpos detectáveis. Obviamente, a probabilidade pré-teste dependerá de que fase da epidemia a cidade em questão esteja enfrentando. Mas supondo uma probabilidade pré-teste de apenas 50% em pacientes respiratórios graves com quadro clínico compatível, usando um teste rápido “meia-boca” (75% sensibilidade, 90% especificidade) teríamos as seguintes características:


INFECTADOS (500)NUNCA-INFECTADOS (500)Total (1000)
TESTE POSITIVO375 (75% de 500) 50 (10% de 500)425
TESTE NEGATIVO125 (25% de 500)450 (90% de 500) 575

Com um resultado positivo, em menos de 30 minutos teríamos 88% (=375/425) de confiança que esse é o diagnóstico correto. 

Se resultado negativo, teríamos ainda 21% de risco de que seja um falso-negativo, ou seja, não o suficiente para excluir a possibilidade diagnóstica.

A critério de comparação, um estudo chinês mostrou que 40% dos pacientes COVID19 hospitalizados tiveram seu primeiro teste RT-PCR falso-negativo. Considerando a dificuldade técnicas em coleta adequada de swab nasofaríngeo e a demora em obtermos resultados de RT-PCR, mesmo um teste rápido ruim seria de grande utilidade clínica em estabelecer precocemente diagnóstico de COVID19 em pacientes graves. A medida que o número de infecções cresça na comunidade, a probabilidade pré-teste em ambiente hospitalar tende a aumentar, melhorando ainda mais esses valores preditivos. Adicionalmente, testes sorológicos laboratoriais, se bem validados, podem apresentar sensibilidades e especificidades muito maiores que os testes rápidos, embora seus resultados não sejam imediatos.

Portanto, respondendo a pergunta inicial sobre qual o significado do seu resultado no teste rápido para COVID19, a resposta é depende. Sem saber qual o teste utilizado, como foi validado, e qual a prevalência de infecção por SARS-CoV-2 na população estudada, é impossível dizer o que um resultado positivo ou negativo significa. Por isso, gestores, médicos e público geral devem ser cautelosos em adotar precocemente os testes rápidos. Não só dinheiro pode estar jogando fora, mas inteiras políticas públicas podem ser construídas em resultados completamente errados. A ciência pede cautela. 



Gostou desse texto sobre métodos diagnósticos em COVID19? Veja meu texto sobre resultados negativos em testes RT-PCR.

Calculadora de Risco Familiar COVID19

A plataforma WordPress não permite a execução de JavaScript, portanto tive que usar outro servidor para manter o código-fonte da calculadora. Click na imagem acima ou AQUI para acessar a calculadora.

Definições:

Infection Fatality Rate (IFR): Dentre todos os infectados (incluindo assintomáticos), quantos morrem em decorrência de COVID19.

Infection-related Hospitalization Rate (IHR): Dentre todos os infectados (incluindo assintomáticos), quantos são hospitalizados em decorrência de COVID19.

Fonte: Verity R, Okell LC, Dorigatti I, et al. Estimates of the severity of coronavirus disease 2019: a model-based analysis. The Lancet Infectious Diseases. 2020. doi:10.1016/s1473-3099(20)30243-7. [Publicado em 30 Março 2020]

Crítica ao Estudo da Prevent Senior

English summary: this pre-print study got ethics approval after they had already treated patients (used future start/end dates), had severe methodological flaws, highly subjective admission (main outcome) criteria, and to top it off most of the P values don’t seem to be correct at all.


Ontem circularam notícias sobre o estudo da Prevent Senior que investigou o tratamento precoce de pacientes COVID19 com hidroxicloroquina e azitromicina, embora tal estudo não estivesse disponível em nenhum servidor de artigos pre-print (estranho que a mídia teve acesso antes mesmo da comunidade científica). Hoje recebi um arquivo PDF da versão final pré-submissão de tal estudo.

Estudos clínicos que avaliam diferentes terapias são urgentemente necessários para auxiliar nossas estratégias de tratamento e controle da pandemia atual. Medicações que comprovadamente reduzam a progressão de casos leves para graves serão extremamente úteis e têm o potencial de levar a redução substancial no número de mortes. Por isso li com grande interesse o estudo liderado pelo Dr. Rodrigo Esper, intitulado “Empirical treatment with hydroxychloroquine and azithromycin for suspected cases of COVID-19 followed-up by telemedicine”.

Não sabemos ainda para qual revista esse estudo foi formatado ou enviado. O documento dá a entender que todos os 15 autores (todos médicos) são funcionários do instituto Prevent Senior em São Paulo. Nenhum conflito de interesse foi relatado pelos autores. O estudo foi financiado pela Prevent Senior.

Sabemos que a Prevent Senior está no spotlight de toda a polêmica envolvendo a cloroquina no Brasil, com seu diretor-executivo, que é um dos autores desse estudo, declarando para diversos jornais/revistas/entrevistas que os pacientes da rede eram tratados com hidroxicloroquina + azitromicina apesar das críticas das autoridades sanitárias. Ao fazer defesa tão pública e tão fervorosa de uma terapia não-comprovada, podemos imaginar que a Prevent Senior tenha interesse em que os resultados desse estudo sejam positivos. Isso levanta algumas suspeições sobre a isenção dos pesquisadores, e me faz olhar mais a fundo em outras questões antes de lê-lo.

O estudo foi autorizado pela CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) Plataforma Brasil CAAE:30586520.9.000.0003 (Parecer: 3.968.699).

Quando buscamos esse código na CONEP, encontramos as seguintes informações:

Vemos que a data de aprovação ética pelo comitê de ética em pesquisa/CONEP foi apenas em 14 de Abril de 2020, com data de início prevista para 06 de Abril a ser completada em 28 de Junho de 2020. No entanto o estudo diz o seguinte:

Compreendemos que pacientes foram tratados e dados foram coletados a partir de 26 de Março 2020, antes portanto da autorização da comissão nacional de ética em pesquisa (14/04/2020). A resolução 466/2012 do Ministério da Saúde é claro ao dizer que “cabe ao pesquisador apresentar o protocolo devidamente instruído ao CEP ou à CONEP, aguardando a decisão de aprovação ética, antes de iniciar a pesquisa”.

4 – POR QUE EU NÃO POSSO ENCAMINHAR MEU PROTOCOLO DE PESQUISA PARA ANÁLISE DO SISTEMA CEP/CONEP APÓS JÁ TER COLETADO DOS DADOS QUE NECESSITO PARA VALIDAÇÃO DO PROJETO?

A principal missão do Sistema CEP/CONEP é garantir a proteção dos  participantes de pesquisa. Não há como proteger alguém retrospectivamente! Proteção se faz para o futuro, e não para o passado... Neste sentido, se o pesquisador realizar procedimentos com os participantes de pesquisa antes de obter a aprovação do Sistema CEP/CONEP, seja o mero recrutamento, tais procedimentos já não poderão ser respaldados pela análise ética.

Por isso, cabe ao Sistema CEP/CONEP a análise dos protocolos de pesquisa que ainda não foram iniciados, sendo vedada a análise de projeto já iniciado. Os únicos procedimentos de uma pesquisa passíveis de serem iniciados antes da análise ética são os que não se referem a pessoas, tais como pesquisa bibliográfica, levantamento de necessidades, orçamentação, dentre outros.

Cabe ressaltar que o parecer de aprovação do Sistema CEP/CONEP à um projeto de pesquisa torna co-responsáveis pela sua execução todos os que dela participaram, dando maior segurança e respaldo ao pesquisador.

Fonte: https://cep.prpi.ufg.br/p/10879-o-que-deve-ser-analisado-pelo-sistema-cep-conep

Portanto identificamos uma falha ética grave dos autores e possivel fraude em pesquisa, mesmo antes de lermos o estudo. Para piorar, os dados registrados na plataforma ClinicalTrials.gov (identificador NCT04348474) também mostram diversas inconsistências.

Novamente vemos datas diferentes de início (20/04/2020) e término (30/06/2020) da pesquisa clínica em questão. Além disso, vemos pela primeira vez a empresa “Azidus Brasil” como patrocinadora (sponsor) da pesquisa. Uma busca rápida no mostra que a Azidus Brasil é uma Contract Research Organization, ou seja, uma empresa com experiência na criação e realização de protocolos de pesquisa.

ATUALIZAÇÃO IMPORTANTE (20/04): A Luciana Ferrara, CEO da Azidus Brasil, entrou em contato com o blog informando que os códigos CONEP/ClinicalTrials.gov se referem a outra pesquisa ainda não iniciada. O comentário dela pode ser encontrado na seção comentários dessa página. Mas vou colá-lo aqui para fins de transparência: “Ola a todos, meu nome é Luciana Ferrara e sou CEO da Azidus Brasil. Gostaria de fazer um esclarecimento. O estudo que foi enviado a CONEP e aprovado é o mesmo que está no ClinicalTRials.gov como ainda não recrutando. Este é o fato que deve ser levado em consideração. Os estudo de avaliação de dados da vida real que a Prevent Senior realizou não tem os mesmos objetivos que o estudo aprovado pela CONEP. Este estudo será ainda realizado pela Prevent Senior e os dados assim que finalizados também poderão ser publicados pela empresa. Como empresa de pesquisa clinica sabemos que um estudo regulado somente pode ser iniciado em pacientes após sua devida aprovação pela CONEP e, após os ritos de Bos Praticas Clinicas serem cumpridos. Assim na análise acima é feita uma mistura de estudo. A disposição para qualquer esclarecimento.” Eu respondi que os códigos foram incluídos no manuscrito e dão claramente a entender que se referem a pesquisa citada. Ela então responde: “Olá Ricardo. Eu estou explicando como parte interessada pois o nome de minha empresa foi citada no estudo e estou esclarecendo o que é realmente o fato. A Prevent também deve ter feito uma troca de documentos porque eles também devem ter trocado as intensões de cada estudo. Como a Prevent não tem cadastro na plataforma clinicaltrial.gov e quem fez o cadastro foi a minha empresa o nome sai como patrociandor o qual não é. Então eu não posso deixar isso sem explicações porque fica parecendo que fizemos algo fora das Boas Praticas Clínicas o que não foi o caso. Meu contrato com a Prevent Senior para monitorar este estudo ainda nem começou. E por isso preciso fazer este esclarecimento.”

Com todas essas informações em mente, podemos começar a analisar tecnicamente o pre-print.

Objetivo da pesquisa: avaliar se o tratamento empírico de pacientes suspeitos para COVID19 com hidroxicloroquina + azitromicina está associado a menor necessidade de hospitalização.

Metodologia

População estudada: pacientes do plano de saúde Prevent Senior, residentes na cidade de São Paulo, que apresentavam sintomas gripais persistentes por mais de 2 dias. Foram casos consecutivos entre 26 Março e 04 de Abril de 2020 que entraram em contato com serviço de telemedicina ou foram diretamente ao serviço de pronto-atendimento da Prevent Senior. Somente foram convidados a participar os casos leves, que não necessitavam de internação imediata, e que não possuiam contraindicações ao tratamento.

  • Teste/Swab para RT-PCR não fez parte do protocolo

Os pacientes convidados a participar foram informados sobre os potenciais riscos e efeitos colaterais das medicações e que a terapêutica proposta para COVID19 não tem eficácia comprovada. O termo de consentimento foi enviado e assinado eletronicamente pelos pacientes ou presencialmente para os que foram recrutados no pronto-atendimento.

Critérios de Inclusão:
– Idade > 18 anos
– Sintomas gripais persistentes por >3 dias
– Diagnóstico provável de COVID19
– Sem necessidade imediata de hospitalização

Critérios de Exclusão:
– Gestantes
– Prolongamento intervalo QT já conhecido
– Insuficiência hepática ou renal grave
– Miastenia Gravis
– Retinopatia grave

  • Não houve randomização
    • Pacientes que recusaram o protocolo de pesquisa se tornaram grupo controle
  • Estudo aberto
    • Pacientes sabiam se estavam recebendo tratamento ou não
    • Médicos do serviço de telemedicina sabiam quem estava ou não sendo tratado
    • Médicos da pronto-atendimento sabiam quem estava ou não sendo tratado
    • Radiologistas poderiam caso quisesse saber se paciente recebeu tratamento ou não
    • Pesquisadores, Sponsor, Bioestatístico sabiam quem estava sendo tratado ou não

Tratamento prescrito (entregue gratuitamente na casa dos pacientes) :
– Hidroxicloroquina 800mg no primeiro dia, seguido por 400mg/dia por 6 dias (total 7 dias)
– Azitromicina 500mg/dia por 5 dias (total 5 dias)

Acompanhamento:
– Consultas uma vez ao dia por telemedicina até o 5° dia de sintomas
– Consultas duas vezes ao dia por telemedicina entre o 5° e 14° dias de sintomas

Nessas consultas por telemedicina foram avaliados:
– Padrão respiratório (observado via videoconferência)
– Dispnéia (sensação subjetiva referida pelo paciente)

Critérios para hospitalização:
– Queda do estado geral
– Saturação periférica de oxigênio < 90%

Desfechos:
– Necessidade de hospitalização (tratado vs. não-tratado)
– Necessidade de hospitalização (tratamento iniciado antes do 7° dia de sintomas vs. tratamento iniciado após o 7° dia de sintomas)

Comentários sobre objetivo e metodologia do estudo

  • O estudo tenta responder a pergunta clínica “é possivel evitar hospitalizações ao tratarmos precocemente pacientes suspeitos para COVID19 com HCQ+AZT?”.
  • A população estudada é tem um claro viés de ser mais idosa e de nível socioeconômico mais alto, já que são clientes privados da Prevent Senior que tinham condições de realizar videoconferências duas vezes ao dia.
  • A falta de teste para RT-PCR não inviabiliza o estudo, pois na prática clínica brasileira não há indicação de realizar teste nos quadros leves como esses. No entanto, ao não saber o que estamos tratando, temos que imaginar que grande parte dos pacientes recrutados não possuia COVID19 e mesmo assim foi submetido aos riscos do tratamento. Uma questão a ser debatida pelo comitê de ética (acionado retrospectivamente).
  • Os critérios de inclusão diferem muito dos registrados no ClinicalTrials.gov (>70 anos ou <70 anos com comorbidades)
  • A criação do grupo controle com os pacientes que recusaram o tratamento é algo extremamente questionável. Essa prática introduz um potencial viés de seleção: pessoas que aceitam um tratamento experimental tendem a ser diferentes de pessoas que o recusam. Em tempos de politização da cloroquina e de sectos dos que a defendem ou criticam fervosaramente, esse viés é muito importante e pode impactar significativamente o tamanho de efeito placebo em um estudo open-label como esse.
  • Há um problema muito grande na junção dos seguintes fatores em um mesmo estudo:
    • Politização do medicamento proposto
    • Hospital/plano de saúde envolvido em confusões políticas e midiáticas
    • Pacientes que recusam tratamento politizado se tornam grupo controle
    • Pacientes sabem se estão recebendo ou não o tratamento
    • Equipe de telemedicina sabe se paciente recebeu ou não tratamento
    • Dispnéia, possivelmente a mais subjetiva das sensações, e esforço respiratório (também de avaliação subjetiva) são avaliados remotamente e usados como critério para encaminhamento do paciente ao pronto-atendimento
    • No pronto atendimento a equipe assistencial sabe se o paciente está recebendo ou não tratamento.
    • Critério de internamento é “queda do estado geral” (extremamente subjetivo)
    • Internamento é o desfecho principal do estudo
  • Imagino como me sentiria como o médico fazendo o plantão de telemedicina e ligando para um paciente de 73 anos, no 8° dia de sintomas, que recusou o tratamento proposto. Na primeira chamada ele me diz que está mais cansado que o habitual, e na segunda chamada eu preocupado questiono repetidamente se ele não sente falta de ar. Ele diz que sim, acha que teve alguns episódios de falta de ar quando levantou da cama mais cedo, mas agora está sentado vendo TV e sente-se bem. Fico preocupado, já que ele não está sendo tratado, e o encaminho ao pronto-atendimento para ser avaliado mais cuidadosamente. “Lá eles saberão o que fazer” penso eu.
  • Agora me imagino como médico do pronto atendimento, atendente esse paciente encaminhado pelo colega da telemedicina, “pela minha falta de ar” diz o paciente. Coloco o oxímetro e vejo SpO2 92%, paciente respirando com FR 20 mas sem esforço. É um valor limítrofe. Pergunto ao paciente como tem sido os últimos dias, e ele me diz que teve alguns episódios de diarréia, está mais cansado que o habitual, e teve grande redução do apetite. Me preocupo devido a idade, ausência de tratamento, diarréia, redução da alimentação e interno o paciente por “queda do estado geral”.
  • Ou seja, um simples “receio” do atendente de telemedicina inicia uma sequência de eventos que culmina em um desfecho clínico. Além disso, as vezes é uma benção não sabermos a saturação dos pacientes que ficam em casa e não visitam o pronto-atendimento. É possível que muitos pacientes COVID19 façam hipoxemia leve e se recuperem completamente sem que saibamos. Tais pacientes quando trazidos ao pronto-atendimento são admitidos, e podemos iatrogenizá-los (Happy Hypoxemics)
  • O critério de internação “queda do estado geral” é extremamente subjetivo, e basicamente aceita qualquer coisa para internar um paciente idoso com suspeita de COVID19 que ainda por cima recusou aquele tratamento que “eu” acredito que “possa ajudar”.

Resultados

  • 721 pacientes sintomáticos consecutivos passaram pelo serviço de telemedicina da Prevent Senior no período do estudo
  • 636 pacientes puderam ser analisados (85 tiveram problemas técnicos/registro)
  • 224 pacientes (35%) recusaram participar da pesquisa e se tornaram grupo controle (!!!)
  • 412 pacientes (65%) concordaram em receber o tratamento proposto

Os grupos eram semelhantes o suficiente antes de se iniciar o tratamento?
– Idade semelhante
– Sexo feminino predominante semelhante
– Mais pacientes com fatores de risco/comorbidades no grupo intervenção
– Pacientes mais sintomáticos no grupo intervenção

Comentário:
A existência de pacientes com mais comorbidades, fatores de risco e mais sintomáticos no grupo intervenção não é surpresa em um estudo como esse. É de se esperar que pacientes que se sintam sob maior risco de adoecer ou que estejam se sentindo pior sejam mais propensos a consentir a receber tratamento experimental. De forma semelhante, pacientes mais saudáveis ou que estejam com sintomas mais leves tenderão a recusar o tratamento por julgarem menos provável que adoeçam gravemente.

Considerando que o critério de inclusão é existência de sintomas gripais, esperaríamos que todos os pacientes em ambos os grupos tivessem pelo menos um sintoma gripal ao início do tratamento. No entanto, uma análise rápida mostra que no grupo controle nem todos os paicentes tinham pelo menos um sintoma gripal. Como então foram incluídos no estudo? Estranho..

Efeitos Adversos
– Autores descrevem que não houve efeitos adversos graves no grupo intervenção
– No entanto relatam nenhuma morte no grupo controle e 2 mortes no grupo intervenção
– Uma das mortes foi por “síndrome coronariana aguda” (ou seja, cardiac-related death)
– A outra morte foi por “câncer metastático”, embora não expliquem mais detalhes.

Comentário:
A falta de dados nesse estudo é preocupante. Duas mortes em 412 pacientes comunitários ao longo de meros 14 dias de acompanhamento é algo que deve ser investigado, ainda mais se uma das mortes foi de causa cardíaca e a outra foi simplesmente colocada na conta do câncer metastático. Mortes em clinical trials precisam ser investigadas adequadamente, pois justamente os mais doentes é que tendem a desenvolver efeitos colaterais graves a medicações. Quando consideramos que esses eram pacientes comunitários, sem diagnóstico firme de COVID19, a balança de risco/benefício deve ser muito bem calibrada.

Desfechos
– 1.9% hospitalizados no grupo intervenção (calculado como 8 pacientes)
– 5.4% hospitalizados no grupo controle (calculado como 12 pacientes)
– Os autores descrevem desfechos em pacientes com tratamento iniciado antes vs. após 7° dia de sintomas, porém não nos informam o número absoluto nem quantos pacientes existem em cada uma dessas divisões
– 1.2% hospitalizados (Tratamento iniciado antes do 7° dia)
– 3.2% hospitaliados (Tratamento iniciado após o 7° dia)

Comentário
Quatro pacientes hospitalizados a mais no grupo controle. Um número incerto hospitalizados no tratamento precoce vs. tardio, já que os autores não nos deram os números absolutos de eventos. Não temos nenhuma indicação de em que momento os pacientes precisaram ser internados.
Os autores fazem cálculos bioestátisticos em cima desses valores, usando Chi-quadrado e teste exato de Fisher, sem dar mais detalhes. No entanto, os grupos não foram selecionados aleatoriamente, colocando em xeque qualquer significância estatística calculada. Além disso, o número de desfechos é muito pequeno e eu questiono seriamente a análise bioestatística realizada, já que literalmente todos os valores são P < 0.001, inclusive alguns com valores não tão discrepantes. Não temos como saber qual teste estatístico foi utilizado em qual momento, e não consigo reproduzir os resultados mostrados. Por exemplo, analisando o número de pacientes que apresentava coriza no início do tratamento:

CorizaSem CorizaTotal
Grupo Intervenção40372412
Grupo Controle14210224
TOTAL | GRUPO TRATAMENTO | GRUPO CONTROLE | P

Os autores escreveram que a diferença entre os grupos para esse sintoma é estatisticamente significativa com P < 0.0001. Mas ao usar os mesmos números do estudo eu obtenho os seguintes resultados:

  • Usando Chi-quadrado (two-tailed): P = 0.1350 (Sem correção de Yates)
  • Usando Chi-quadrado (one-tailed): P = 0.0675 (Sem correção de Yates)
  • Usando Chi-quadrado (two-tailed): P = 0.1784 (Com correção de Yates)
  • Usando Chi-quadrado (one-tailed): P = 0.0892 (Com correção de Yates)
  • Usando Fisher Exact (two-tailed): P = 0.1795
  • Usando Fisher Exact (one-tailed): P = 0.0872

Fiz cálculos semelhantes para outras variáveis e também obtive resultados muito discrepantes. Algo de muito errado aconteceu na análise estatística desse estudo e precisa ser revista imediatamente.

Chegando nesse ponto, desisto de completar a análise pois perdi qualquer esperança de que os dados apresentados neste documento estejam corretos. Questiono se estou perdendo meu tempo analisando algo tão mal-feito que deve ser barrado no processo de peer review e necessitará de significativas alterações para que seja considerado minimamente confiável.

Conclusão: a pergunta do estudo continua em aberto.

Como preparar seu hospital/UPA para COVID19 – Parte I

Este post é uma tradução PARCIAL do material preparado pela equipe de emergência de Mistissini, Quebec, Canadá, para utilização em locais remotos e/ou com poucos recursos. Isso se aplica à grande parte da realidade brasileira, especialmente às UPAs que são centros de estabilização e tratamento (teoricamente) temporários. O Canadá tem bastante experiência no assunto devido a suas regiões remotas que precisam de assistência médica, frequentemente para populações pobres e vulneráveis. Mistissini fica a 9hrs de carro de Montreal (800Km), ou mais de 1hr30min de avião aeromédico. Essa equipe possui ampla experiência em prover cuidados médicos em situações de crise, como o surto de Ebola na RDC, pós genocídio em Ruanda e em regiões da Índia, China e África ocidental. Eles decidiram escrever o documento original (e criaram um site) por acharem que muitos locais não estão se preparando adequadamente para o que está por vir.

Diferentemente de um acidente com múltiplas vítimas, uma pandemia é um evento prolongado. As coisas não ficam caóticas por algumas horas e depois retornam ao normal. O componente infeccioso requer urgência e proatividade.

Se você está REAGINDO em uma pandemia, você está MUITO DEVAGAR, e MUITO DEVAGAR = MORTES.

Você terá que fundamentalmente reorganizar TUDO o que seu serviço faz.

Este guia é pensado para que você possa dividir seu trabalho em conceitos que você possa então aplicar localmente dentro de sua realidade de infraestrutura e recursos.

COVID19 é uma questão social e você precisa estar atento ao que está acontecendo fora de sua comunidade, dentro de sua comunidade e dentro do seu serviço de saúde.

  • Ataque ou mitigue todos os fatores e trabalhe com outras organizações sociais/comunitárias
  • Atitudes mal-feitas fora do hospital impactam diretamente no número de pacientes que chegarão até você

Você precisa antecipar AGORA a realidade de um cenário completamente descontrolado, pensar os fluxos e sistemas e testá-los.

“Rapidez é melhor que perfeição em epidemias”

(Dr. Mike Ryan, OMS)

Você não conseguirá fazer tudo isso sozinho(a). Peça ajuda. Intervenha por seus pacientes e colegas. Mantenha-se seguro.

Princípios

  1. Planeje e antecipe cenários de sobrecarga do sistema
  2. Planeje para o pior cenário possível: Proatividade sempre melhor que Reatividade
  3. Aja rapidamente, Seja flexível
  4. Simplicidade é melhor que complexidade
  5. Tenha visão macro, reduza a componentes individuais e mobilize recursos rapidamente. Reanalise regularmente

Planeje e antecipe cenários de sobrecarga do sistema

Em situações de alto risco ou sob pressão ficamos assustados, fora de controle e sem noção do que fazer. Pessoas e sistemas paralisam. Para evitar que isso ocorra é necessário planejamento, treinamento, prática, análise e repetição.

Planeje para o pior cenário possível: Proatividade sempre melhor que Reatividade

É mais fácil de-escalar suas preparações para um cenário não tão ruim, do que escalar para um cenário pior que o previsto (ainda mais sob pressão de tempo e recursos escassos)

Aja rapidamente, Seja flexível

Rapidez é melhor que perfeição. Coloque coisas em prática mesmo que inacabadas e corrija conforme necessário.

Não se baseie apenas no que pessoas/serviços próximos estão fazendo.

Simplicidade é melhor que complexidade

Complexidade desnecessária é perigosa. Evite e seja eficiente.

Tenha visão macro, reduza a componentes individuais e mobilize recursos rapidamente. Re-analise regularmente

Voce tem que manter tudo em mente mas será sobrecarregado com informações. Priorize, consiga ajuda, mantenha o foco. Os dias que virão serão mais difíceis do que você imaginou. Você se sentirá perdido, ansioso e sobrecarregado. Pense nos seus colegas na Síria ou no Sudão que estão passando por tudo isso enquanto bombas caem, surto de sarampo, fome e disputas políticas. Poderia ser pior…

Você

Você precisa passar por tudo isso, precisa se manter saudável, precisa estar em dia com muito mais informação do que você pode manejar. Tente dormir adequadamente. Tenha um sistema para se manter em dia com tudo o que acontece. Tenha uma rotina de revisar processos diariamente/semanalmente com pessoas-chave da sua equipe. Você não conseguirá fazer tudo sozinho, portanto consiga ajuda de seus colegas.

Priorize as informações e os objetivos. Você será empurrado e puxado para fora da rota várias vezes por dia. Você precisa, de forma planejada, focar no que é importante agora e no que se tornará importante no futuro. A situação do morgue precisa ser corrigida, mas não foque nisso agora se sua situação da pré-triagem ainda não está funcionando (exemplo). Tenha em mente a idéia de quando coisas serão necessárias, com prazos estabelecidos. Você terá que ser firme com esses prazos. Seja gentil, colaborativo, mas firme. Você não está em sua posição para ser popular, você está aí para ser efetivo. Vidas dependem da sua efetividade.

Mantenha comunicação com seu staff: calma, honesta, sucinta e frequente

Contenção e Prevenção: Conceitos

Prevenção e reduzir exposição são o primeiro passo. Achate a curva. COVID19 já chegou. Objetivo é ter 100 pacientes doentes ao longo de 5 semanas ao invés de em 10 dias.

Fora do serviço de saúde – Na Comunidade
– Isso terá implicações locais, regionais e nacionais. Intervenha onde puder!
– Evite viagens
– Limite aglomerações
– Pratique distanciamento social
– Sua comunidade pode decidir se fechar para visitantes externos exceto equipes de emergência

Dentro do serviço de saúde
– Diferente de um acidente com múltiplas vítimas, em uma pandemia pacientes infectados vão transmitir para não-infectados e exponencialmente aumentar a sobrecarga no sistema ao longo de semanas ou meses.

Restrinja a entrada: Reduza toda exposição desnecessária

  • Não se torne a origem da transmissão. Limite ou restrinja o número de pessoas que adentram seu serviço. Portas podem precisar ser trancadas para proteger pacientes e ofertar o melhor cuidado possível. Pode ser necessário que pacientes liguem antes de vir. Tenha equipe de segurança para controlar isso.
    “Se o Sam’s Club tem melhor controle de acesso que seu serviço, VOCÊ TEM UM PROBLEMA”
  • Sua pré-triagem será bastante imperfeita no início. Se você não controlar entradas sua equipe e seus pacientes serão colocados em risco desnecessário.
  • Certifique-se que o público sabe que NÃO deve ir até seu serviço sem ligar/ser encaminhado antes
  • Implemente consultas telefônicas / virtuais. Isso necessitará recursos e planejamento
  • Suspenda todas as consultas não-urgentes
  • Mantenha distanciamento social no ambiente de trabalho. Controle a transmissão com máscaras de tecido.
  • Se sua farmácia dispensa medicações à população, organize-a para evitar que pessoas tenham que vir até você. Coordene para que medicamentos sejam entregues em casa ou em outros locais.

Separe os fluxos de pacientes: Pré-triagem, Controle de Transmissão, Zonas

Após controlar o número de pessoas que entram, foque em:
– Usar a pré-triagem para separar pacientes infectados/suspeitos dos não-infectados
– Crie Zonas para essas categorias de pacientes

Diagrama de estrutura ideal

Esse é um sistema “dos sonhos”, com número ilimitado de equipes médicas, enfermagem, equipes de suporte.

  1. Garanta que há apenas 1 ou 2 pontos de entrada controlada
  2. Implemente a pré-triagem na entrada ou antes da entrada (ex: barraca fora do hospital) com formulários de perguntas sobre sintomas (respiratórios e outros) e viagem recente. Em algum momento você terá triagem por telefone, mas você deve sempre ter um backup nos pontos de entrada
  3. NINGUÉM entra sem passar pela pré-triagem
  4. Você DEVE monitorar e TESTAR a pré-triagem. Pelo menos TODO DIA, melhor 2x por dia
    • Implementar novos sistemas é complicado, tem uma curva de aprendizado, e múltiplas coisas que podem dar errado. Só porque você implementou não quer dizer que está funcionando. Na melhor das hipóteses vai demorar 7 dias para que funcione adequadamente. Alie a isso o fato de que as informações estão mudando a todo momento, e entenda que seu sistema possui brechas que coloca pacientes e equipe em risco de exposição. Você precisa achar e corrigir essas brechas.
    • Seja gentil e colaborativo ao testar e faça as mudanças necessárias. Solicite feedback. Se sua equipe da linha de frente não conseguem fazer adequadamente, VOCÊ precisa reformular para que consigam.
  5. Controle de Transmissão: Cada vez mais evidências de transmissão de pessoas completamente assintomáticas. Coloque máscaras (de tecido para economizar EPIs) em TODOS que estiverem dentro/próximo ao seu hospital: equipes e pacientes. Certifique-se que eles entendem que essas máscaras NÃO SÃO EPIs, apenas a contribuição de cada um deles em reduzir a transmissão.
    • Considere fazer máscaras de tecido para pacientes assintomáticos que possam ser lavadas em altas temperaturas e sabão/alvejante.
  6. Zonas: Dentro (após pré-triagem) divida os fluxos de pacientes de tal forma que pacientes suspeitos/confirmados não possuem contato algum com pacientes verdes (não-COVID) (Atenção, essas cores não são escalas de gravidade, e sim de risco de infeccao pelo COVID, como zonas quentes e frias)

Se a transmissão chegar a níveis comunitários, os critérios da pré-triagem devem ser alterados/simplificados para perguntarem somente sobre sintomas (e não mais sobre viagens recentes)

Mantenha-se atualizado com as autoridades de saúde pública, sociedades profissionais e colegas.

Logística de pacientes no mundo real

Aquele diagrama ideal é só isso: ideal. Você não terá tantos recursos. Mantenha em mente que você terá diferentes categorias de pacientes:

Ambulatorial (estável), Emergência (problema agudo) e Enfermaria (internados)

Cada categoria dessas também pode ser Vermelha, Amarela ou Verde. Muitas combinações possíveis. Áreas quentes = Vermelha + Amarela, área fria = verde.

Você precisará de zonas vermelhas, amarelas e verdes para pacientes emergência.
Idealmente você também precisaria ter todas essas zonas para pacientes ambulatoriais. Se você tiver recursos suficientes para isso, definitivamente faça isso. Na prática, não haverão recursos pessoal/estrutura suficientes.

Em geral as consultas de pacientes ambulatoriais deverão diminuir dramaticamente e se tornar consultas por telemedicina. Com muito menos pacientes poderá então se tornar mais factível organizar as 3 zonas para pacientes ambulatoriais.

Mas alguns pacientes ambulatoriais não podem parar de consultar, como as gestantes. Uma possibilidade é ter uma área separada externa para pacientes ambulatoriais verdes. Qualquer paciente ambulatorial amarelo ou vermelho (tendo em vista que você está pré-triando por telefone também) é consultado em uma ou algumas salas/áreas pré-designadas.

No caso de cuidados especializados, por exemplo Obstetrícia, as equipes desse serviço podem ter que passar todo ou parte de sua dia na (acute area) para consultarem seus pacientes.

Você terá que “brincar” com diferentes idéias e trabalhar junto com outros colegas da equipe assistencial e de equipes de suporte para fazer as coisas funcionarem. Esteja preparado para tentar, falhar e tentar algo diferente.

Gestantes

  1. Tire pacientes gestantes das áreas quentes para COVID19
  2. Não examine pacientes gestantes nas áreas quentes (vermelha e amarela)
  3. Considere fortemente mover o setor de atendimento ambulatorial a gestantes para uma área fora do hospital (outro hospital? clínica especial?)

Pré-Triagem

  1. Idealmente consiga que os pacientes liguem antes de buscar o serviço
    1. Se eles não estão graves e tem critérios para serem testados, isso pode ser organizado antes que eles cheguem
    2. COLETA DE TESTES SWAB DEVE SER REALIZADA NA ÁREA EXTERNA, com equipe em EPI (Equipamento de Proteção Individual) completo (Benefício: não é necessário limpeza/desinfecção e não há contaminação acidental de outros)
    3. Tente fazer coleta de testes em “lotes” de pacientes para economizar EPIs e tempo. Só troque os EPIs necessários entre pacientes.
    4. Se a coleta externa não for possível, tente fazer em uma sala remota, com baixo fluxo de pessoas. Garanta os EPIs adequados, faça a desinfecção da sala após o uso.

Pré-Triagem para qualquer pessoa que chegue ao seu serviço

Você precisará adaptar esse formulário a sua realidade local, em especial a necessidade ou não de perguntas sobre viagem. Retire qualquer pergunta que não altere o fluxo. Use os seus profissionais mais bem treinados para a pré-triagem. As informações sobre pré-triagem adequada mudam com muita velocidade, mantenha-se atualizado e altere conforme necessário.

TODAS as pessoas que entram precisam lavar as mãos. Providencie água corrente, sabão líquido suficiente, papel toalha, lixo, etc. Processo deverá ser observado.

Esse questionário deverá ser colocado no prontuário de cada paciente.

A1) Febre ou Calafrios?SIM / NÃO
A2)Tosse ou Falta de Ar?SIM / NÃO
A3) Nariz escorrendo ou dor de garganta?SIM / NÃO
A4) Diarréia ou Vômito?SIM / NÃO
A5) Perdeu a capacidade de sentir cheiros ou gostos?SIM / NÃO
A6) Fraqueza súbita ou perda de consciência?SIM / NÃO
B1) Você ou algum contato próximo viajou para fora de sua comunidade nas últimas 2 semanas?SIM / NÃO
B2) Viajou para fora do país nas últimas 3 semanas?SIM / NÃO
B3) Teve contato com alguém COVID19 Positivo?SIM / NÃO
B4) Está em quarentena ou isolamento por COVID19?SIM / NÃO

DECISÃO:
– SIM em qualquer pergunta da seção [A] (sintomas) + SIM em qualquer pergunta na seção [B]: avisar chefe de enfermagem e escoltar paciente para porta da área vermelha (entrada específica para esse setor como uma entrada lateral)
-SIM para perguntas apenas em uma seção (A ou B): colocar máscara no paciente e encaminhá-lo a zona amarela
-NÃO para todas as perguntas: encaminhar paciente a zona verde

Treine e empodere TODA sua equipe de porta de entrada

Lembre-se: você DEVE monitorar e testar sua pré-triagem TODO DIA, e idealmente mais de uma vez ao dia.

Minimize exposição de sua estrutura

Após pré-triagem, se um paciente suspeito puder usar acesso diferente para sala de consulta/atendimento, use-a.
Se isso não for possível, escolte o paciente diretamente a sala de consulta (Você não quer o paciente zanzando pelo seu hospital procurando a área certa).
Se estiver fazendo triagem telefônica, diga exatamente qual horário o paciente deve vir ou diga-o para esperar em seu carro até ser chamado.
Não crie salas de espera a não ser que absolutamente necessário.

A medida que aumentar o volume de pacientes, casos suspeitos terão que aguardar atendimento

Considere criar áreas de espera completamente separadas para pacientes alto-risco/confirmados, suspeitos e não-COVID.
-Por exemplo: usar a garagem ou estacionamento como área de espera para alto-risco/suspeitos
-Se áreas de espera separadas não for possível, divida a sala de espera única em casos potencialmente infectados e casos não-infectados. Crie o maior espaço possível entre as zonas e entre os pacientes. Use áreas externas se possível. Se espaço estiver muito restrito, use barreiras físicas entre os dois espaços: divisória, madeira, acrílico, vidro. Criatividade será necessária.

Local de coleta de Swabs
– Em pacientes estáveis, realizar a coleta dos testes em área externa não é apenas desejável, é necessário: Não há riscos de contaminação nem limpeza necessária. Você deve começar a planejar isso imediatamente.
– Faça testes em “lotes” de pacientes para economizar tempo e EPIs. Só troque o EPI que for necessário entre um paciente e outro.
– As condições climáticas podem dificultar a coleta externa, mas é factível e você deve tentar ao máximo. Planeje inicialmente usar tendas/barracas, ou sistema drive-through, ou uma guarita/porta externa.
– Critérios de testagem conforme autoridades locais.

Layout do serviço: Designando Zonas e Salas de Consulta

Princípios

Uma estratégia para conter a disseminação é dividir o fluxo de pacientes entre COVID positivo/alto-risco/suspeito e não-COVID. Alguns lugares usarão uma zona amarela para os pacientes suspeitos. Por simplicidade e recursos, você pode dividir inicialmente apenas em vermelha e verde. Mova para vermelha, amarela e verde posteriormente. Esse sistema pode colapsar novamente para apenas vermelha e verde conforme a transmissão comunitária avance e qualquer um com sintomas se torne alto risco para COVID.

Analise sua estrutura e comece já a dividi-la em Zonas para fluxo de pacientes.

Dica importante: implemente seu sistema de forma que você não precise regredir (por exemplo, ter que converter áreas vermelhas em áreas verdes). A zona vermelha deve expandir unidirecionalmente se possível.

Progressão de demanda

-Mantenha verdes separados de vermelhos
-Minimise a quantidade de trabalho extra requerido, ex: mover materiais e insumos
-Espaço físico – minimize a distância dos deslocamentos
-Estágios podem ser pulados se necessário
-Coloque a sobrecarga em seus planos

No começo você precisará de apenas uma ou duas salas para pacientes vermelhos, mas a medida que as coisas progridam, mais salas e áreas terão que ser adicionadas a zona vermelha.

Pense AGORA quais salas ou áreas poderão ser convertidas e como/quando isso seria feito. Exemplo:

O próximo passo após isso são hospitais de campanha e ajuda maciça de governo/exército etc. Solicite apoio precocemente!

Preparando-se para a alta demanda e sobrecarga

Agora você possui uma idéia básica de como organizar as coisas.
O problema é que você não sabe quantos pacientes terá, nem com que velocidade eles chegarão.
COVID tem o potencial claro de causar um número imenso de pacientes doentes simultaneamente e consequentemente sobrecarregar sua capacidade de atendimento.

Demanda alta e sobrecarga serão muito difíceis. Planejar agora como você atuará nesses cenários futuros facilitará sua vida.

Você deve se preparar para que a sobrecarga de pacientes leve também a sobrecarga na capacidade de transporte de pacientes, que você terá que cuidar desses pacientes localmente, que seus recursos serão exauridos e que os pacientes não irão sobreviver.

É possível que você tenha que racionar ou triar o tratamento oferecido. Isso significa que o número de pacientes em “cuidados paliativos” irá aumentar muito. Isso não é algo que você está acostumado, e será psicologicamente e emocionalmente muito difícil.

EPIs e Controle de Transmissão

Um carrinho/armário de EPIs deverá ser colocado próximo a entrada de quartos/áreas COVID+.
Use o nível apropriado de EPIs para fazer coleta de testes e procedimentos
O nível adequado de EPIs vai mudar com o tempo e conforme estoques, mantenha-se em dia com as recomendações.

A paramentação/de-paramentação DEVE ser entendida e praticada por toda equipe ANTES de ser necessária. Erros nesses processos frequentemente levam a contaminação.

  • Paramentação/De-paramentação deve ser observada por outro membro da equipe
  • Impressos deverão ser colocados nas portas
  • Existem variações nas técnicas conforme regras locais, OMS, CDC etc. Decida qual utilizará e siga-a.
  • Pelo menos máscaras de tecido em pacientes assintomáticos e equipe para controle de transmissão

REFERÊNCIA: https://www.crisisem.com/

FIM DA PARTE 1
PARTE 2 SENDO TRADUZIDA

O que significa um teste negativo para COVID19?

Cenário 1: Uma pessoa faz uma viagem internacional de 4 dias de duração com uma comitiva próxima de assessores, e no retorno 23 deles testam positivo para COVID19 pelo teste de RT-PCR. Essa pessoa faz 2 testes que trazem resultado negativo.

Cenário 2: Homem de 50 anos sem problemas de saúde é hospitalizado por falta de ar que iniciou uma semana após quadro gripal. Exames de imagens mostram lesões pulmonares bilaterais. Quadro evolui rapidamente para insuficiência respiratória aguda, e apesar dos melhores cuidados intensivos o paciente morre após 10 dias em ventilação mecânica. Dois testes de RT-PCR são realizados durante o internamento e ambos têm resultado negativo.

Testes de RT-PCR

RT-PCR significa reação em cadeia da polimerase – transcriptase reversa. De forma muito simplificada, esse teste usa pequenas “sondas” (primers) que se ligam a regiões conhecidas do RNA viral, que é então amplificado em 40 ciclos sucessivos de mudança de temperatura, dobrando o número de cópias do vírus existentes a cada ciclo (“reação em cadeia”). O equipamento consegue detectar quando um certo limiar de material genético é ultrapassado. Como o número final de cópias é proporcional ao número inicial, podemos entender que quanto menos ciclos forem necessários para que esse limiar seja ultrapassado, mais material genético viral estava presente na amostra testada.

Existem múltiplos tipos de RT-PCR para COVID19

O desenvolvimento de um novo teste de RT-PCR começa o conhecimento do código genético do vírus. Por isso foi tão importante quando, em 11 de Janeiro, meros 2 dias após a OMS ter anunciado a descoberta de um novo coronavírus patogênico a humanos, a China rapidamente sequenciou e divulgou o genoma completo do vírus (naquela época chamado de 2019-nCoV). Com essa sequência em mãos, pesquisadores rapidamente desenvolveram as sondas (primers) usadas nos testes de RT-PCR para a presença do SARS-CoV-2 (nome atual do vírus) em amostras de pacientes. Isoladamente, vários laboratórios anunciaram seus testes, mas cada um deles amplificava regiões diferentes do vírus.

Protocolos originais de RT-PCR para SARS-CoV-2 divulgados pela OMS. Disponível em https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/whoinhouseassays.pdf?sfvrsn=de3a76aa_2

Testes que amplificam regiões diferentes, com reagentes diferentes, terão resultados ligeiramente diferentes. Isso ficou muito claro com a confusão que ocorreu nos Estados Unidos quando o teste “perfeito” que o CDC criou apresentou falhas graves em uma das reações, atrasando a contenção da epidemia e possivelmente contribuindo em milhares de mortes. Atualmente já existem centenas de empresas divulgando seus testes diagnósticos para COVID, e a performance de cada um desses testes é diferente. No Brasil, diferentes laboratórios usam diferentes protocolos — encontrei notícias para o protocolo alemão, mas também para o protocolo do CDC americano. De fato, o protocolo alemão original é tido como referência pelo Ministério da Saúde. Há poucos estudos reportados que compararam dois protocolos diferentes em amostras de pacientes sabidamente COVID19. Um deles, publicado em 30 de março, mostrou que uma modificação no protocolo alemão aumentaria em 40% o número de resultados positivos em amostras respiratórias. Não há notícias, no entanto, de que essa modificação esteja sendo utilizada nos laboratórios brasileiros.

Validação dos testes

Nas primeiras semanas da epidemia, era requisito do Ministério de Saúde que todo laboratório que confirmasse seu primeiro caso de COVID19 por RT-PCR precisaria passar por uma contra-prova em laboratório de referência para validação do método utilizado. Com a rápida ascensão no número de casos confirmados, esse requerimento caiu e agora muitos mais laboratórios estão ofertando esses testes. Nunca houve qualquer tipo de validação de resultados inicialmente negativos: esses nunca foram questionados pelo Ministério da Saúde, embora a falha em se diagnosticar casos verdadeiramente COVID19+ seja muito mais deletéria do ponto de saúde pública do que o falso diagnóstico de COVID19 em um paciente com outra enfermidade.

Qual é a sensibilidade dos testes de RT-PCR no diagnóstico de COVID19?

Essa é uma questão complicada de ser respondida, já que para calcularmos a sensibilidade de um teste diagnóstico precisamos compará-lo com o método diagnóstico “padrão ouro” (gold standard). Acontece que a COVID19 é uma doença recém descoberta, e ainda não temos muitos reagentes e anticorpos descritos para diagnóstico preciso. Infelizmente, nem em autópsias conseguimos provar com exatidão que a causa mortis foi COVID19, já que o único teste validado clinicamente até o momento é justamente a RT-PCR. Ou seja, no momento o padrão ouro é a RT-PCR. E como podemos ver na figura abaixo, os primeiros testes de RT-PCR foram desenvolvidos baseados no código genético do vírus baixado da internet e validados em amostras de SARS e outros vírus respiratórios, e não diretamente em amostras de pacientes COVID19 (que não estavam disponíveis aos pesquisadores no início da pandemia).

Curiosamente, o primeiro teste RT-PCR publicado para COVID19 (protocolo alemão) foi desenvolvido antes mesmo que os pesquisadores tivessem acesso a amostras do SARS-CoV-2, amplificando somente regiões homólogas ao vírus da SARS (SARS-CoV) em amostras antigas de cultura celular.

Então como outros países fazem diagnóstico de COVID19 em pacientes hospitalizados?

Basicamente, testando à exaustão. Se a equipe médica considera que o quadro do paciente é compatível com COVID19, repetem o mesmo teste em diferentes amostras, coletadas de forma seriada, até que qualquer uma delas dê resultado positivo. Obviamente essa estratégia requer laboratórios capazes de rodar muitos testes e retornar o resultado rapidamente à equipe solicitante. Vejamos alguns exemplos.

Time Course of Symptoms, Supplemental Oxygen Requirements, Hospital Admission, and Discharge of Patients Infected With SARS-CoV-2
Young BE, Ong SWX, Kalimuddin S, et al. Epidemiologic Features and Clinical Course of Patients Infected With SARS-CoV-2 in Singapore. JAMA. Published online March 03, 2020. doi:10.1001/jama.2020.3204 [https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2762688]

Nessa imagem, cada linha é um paciente diferente hospitalizado por COVID19 em Cingapura. As “casas” são os dias, as cores refletem sintomas e gravidade a cada dia. Cada bolinha indica o resultado do teste de RT-PCR (protocolo alemão modificado) coletado por swab de nasofaringe naquele dia: verde = negativo, vermelho = positivo, branco = não realizado. Esse estudo tem um viés importante, já que só pacientes confirmados por RT-PCR foram descritos. Logo não sabemos quantos outros casos tiveram resultados negativos repetidos no início do quadro e que potencialmente estavam infectados mas foram incorretamente dispensados. Tendo isso em mente, notem a alternância entre resultados positivos e negativos, principalmente a partir da segunda semana após o início dos sintomas. Na próxima figura podemos analisar a “carga viral” (termo controverso nesse contexto) presente em cada amostra analisada de cada paciente.

Young BE, Ong SWX, Kalimuddin S, et al. Epidemiologic Features and Clinical Course of Patients Infected With SARS-CoV-2 in Singapore. JAMA. Published online March 03, 2020. doi:10.1001/jama.2020.3204 [https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2762688]

Como disse no começo desse texto, o teste de RT-PCR é positivo quando a quantidade de material genético produzido atinge o limiar de detecção do equipamento, logo quanto menor o número de ciclos necessários para se atingir esse limiar, mais RNA viral estava presente na amostra analisada. Notem que em vários dias o exame tem resultado negativo (toca a linha azul), e em muitos outros dias tem cargas virais bastante baixas. Podemos supor que cargas virais baixas potencialmente resultarão em falsos negativos quando amostras forem mal coletadas, incorretamente armazenadas e/ou processadas tardiamente ou com métodos/reagentes de menor qualidade.

Outro exemplo interessante é o dos primeiros 12 pacientes confirmados nos EUA. Novamente, temos que considerar que para terem sido diagnosticados eles precisaram ter resultados positivos, e não temos como saber quantos tiveram resultados negativos e foram erroneamente descartados. Notem a discordância frequente nos resultados de amostras coletadas no mesmo dia, porém de sítios diferentes.

Bolinha preta = teste positivo; bolinha branca = teste negativo, bolinha cinza = teste inconclusivo. NP = amostra de nasofaringe, OP = amostra de orofaringe, Sputum = amostra de escarro, Serum = amostra de sangue, Stool = amostra de fezes,. No eixo horizontal são dias desde o início dos sintomas. [https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.03.09.20032896v1]

Um estudo chinês cita (sem referências) que a taxa de positivação na primeira amostra é de 30-50%, mas que conseguiram atingir 78% ao fazer análise combinada de amostras de naso e orofaringe. Além disso, citam casos de pacientes que tiveram somente amostras de fezes positivas. Outra publicação chinesa com mais de 1000 pacientes mostra que o primeiro teste de RT-PCR foi negativo em ~40% casos.

Muito recentemente, um clinical trial brasileiro reportou que apenas ~50% dos pacientes recrutados foram confirmados por RT-PCR, mesmo utilizando o protocolo atualizado do CDC e coletando 2 amostras em dias diferentes de nasofaringe e orofaringe. Esses eram pacientes graves e clinicamente suspeitos a ponto de receberem tratamento com altas doses de cloroquina. Se em um contexto de um ensaio clínico importantíssimo, com equipes muito bem treinadas para coleta e processamento de repetidas amostras, apenas metade dos pacientes testou positivo, posso especular que a sensibilidade da RT-PCR seja ainda pior em condições normais.

Quais as explicações para esses exames negativos?

A primeira e mais simples explicação é que o SARS-CoV-2 possui um tempo de incubação, um ciclo de replicação em diferentes tecidos (vias aéreas superiores, vias aéreas inferiores, trato gastrointestinal) e uma curva de carga viral em cada tecido que é diferente conforme a progressão e gravidade da doença. Ainda estamos aprendendo sobre o vírus e sua fisiopatologia no organismo humano, e resultados publicados até o momento são frequentemente conflitantes. Mas é certo que amostras coletadas em um momento de baixa presença viral têm grandes chances de levar a resultados falsos negativos.

Outra razão é falha no processamento da amostra. Esse não é um exame em que uma gota de sangue ou uma amostra de urina é colocada em um equipamento que realiza uma análise automatizada e cospe um resultado. Técnicos com alto grau de treinamento precisam realizar vários passos de pipetagem e processamento para extração de RNA viral antes que o teste de RT-PCR possa finalmente ser realizado. E como vimos anteriormente, reagentes e protocolos diferentes podem levar a resultados diferentes. Erro humano é sempre possível, especialmente quando laboratórios estão trabalhando muito acima de sua capacidade.

Erros no transporte e armazenamento das amostras coletadas também são comuns. RNA degrada rapidamente em temperatura ambiente, e por isso as amostras devem ser imediatamente refrigeradas e analisadas o mais cedo possível. O guia de vigilância epidemiológica para COVID19 do MS diz “as amostras devem ser mantidas refrigeradas (4-8°C) e devem ser processadas dentro de 24 a 72 horas da coleta até chegar ao LACEN ou ao laboratório privado. Após esse período, recomenda-se congelar as amostras a -70°C até o envio ao laboratório, assegurando a manutenção da temperatura”. Isso contrasta com nossa realidade de laboratórios sobrecarregados, longas filas de exames e armazenamento incorreto de dezenas de milhares de amostras nos melhores laboratórios do país.

Potencialmente a principal causa de exames falsos negativos está relacionada a forma ou ao sítio de onde a amostra é coletada. Um swab de nasofaringe (vide figura abaixo) é um procedimento desconfortável (para dizer o mínimo) que precisa ser realizado por profissional treinado.

Com a progressão da pandemia e a necessidade de realizar centenas de milhares de testes, países mudaram suas regras para coleta de amostras para RT-PCR. Atualmente o Ministério da Saúde orienta coletar uma única amostra do swab combinado nasal/oral. Em comparação, para diagnóstico de Influenza, o próprio MS recomenda coletar 3 amostras (“2 de nasofaringe e 1 de orofaringe”). É possível que muitos locais estejam coletando amostras sem o treinamento adequado, realizando swab nasal anterior (fácil, rápido, indolor e incorreto) ao invés do mais complicado swab de nasofaringe. O próprio guia do MS é confuso em relação a isso (figura abaixo), já que parece ter sido copiado do guia de vigilância epidemiológica para Influenza. No entanto, para diagnóstico de influenza sabemos que a combinação de 2 amostras menos invasivas (nasal + oral) é equivalente em termos de sensibilidade a uma amostra de nasofaringe.

https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_laboratorial_influenza_vigilancia_influenza_brasil.pdf

Em pacientes graves, há indícios de que amostras de vias aéreas inferiores possuem maior sensibilidade quando comparadas a amostras de vias aéreas superiores para o mesmo paciente no mesmo dia. Esse estudo chinês mostrou 100% de amostras positivas (12/12) em lavado broncoalveolar em pacientes na segunda semana desde o início dos sintomas.

Já em casos leves, que não demandam hospitalização, os dados são mais confusos e extremamente influenciados pelo óbvio viés de seleção: somente casos que testaram positivo na primeira ou segunda amostra foram incluídos nos estudos, logo é esperado que qualquer estimativa de sensibilidade nesse grupo seja superestimada. Ao mesmo tempo, há evidências de replicação isolada do SARS-CoV-2 em vias aéreas superiores nos casos leves e de replicação em vias aéreas inferiores nos casos graves. Nos casos leves a carga viral parece ter seu pico no momento de aparecimento dos primeiros sintomas, ou logo nos primeiros dias após o início dos sintomas. Portanto quanto maior for a demora entre aparecimento dos sintomas e coleta do exame, maior a chance de um resultado falso negativo, como sugere esse estudo que modelou matematicamente a probabilidade de falsos-positivos conforme a data coletada. Mas como recomendação prática, durante a pandemia, todos com febre ou sintomas respiratórios devem se isolar por 14 dias independente do resultado de qualquer teste.

Probabilidade de um resultado positivo em teste de RT-PCR em pacientes sabidamente infectados conforme dia da coleta da amostra após início dos sintomas. Amostras de nasofaringe à esquerda e orofaringe à direita. [https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.05.20053355v1]

Em pacientes assintomáticos que são testados por serem contatos de outros pacientes confirmados, não temos nem idéia de qual seja a real sensibilidade do teste. Um teste positivo com certeza deve indicar isolamento imediato. Mas e no caso de resultado negativo? Minha interpretação é de que um (ou dois) testes negativos nessas condições não tem valor clínico algum, e a quarentena deve ser implementada independente do resultado para contatos próximos de pacientes confirmados. O que são contatos próximo com risco de transmissão? Pessoas que residem no mesmo domicílio (Odds Ratio 6.9), companheiros de viagem (Odds Ratio 7.1) e outros contatos descritos como “frequente” (Odds Ratio 8.8) (ref). Não faz sentido que testes negativos em pacientes assintomáticos sejam usados para determinar o retorno ao trabalho e “escapar” da quarentena. E o que acontece quando o paciente assintomático testa negativo dois dias seguidos, e no 4° dia acorda com dor de garganta? Ele solicitará um 3° teste ou terá falso senso de segurança que seus sintomas são decorrentes de um “resfriado comum”, tendo em vista que seus exames foram negativos?

Diagnóstico Clínico
Com a escassez mundial de equipamentos e reagentes e diante da projetada incapacidade do sistema brasileiro em realizar testes de RT-PCR em número suficiente para a população brasileira, devemos considerar a possibilidade de confirmação por diagnóstico clínico-radiológico, principalmente em pacientes que evoluam a óbito sem um diagnóstico laboratorial firmado. Este é um tema controverso, mas o gráfico abaixo mostra o impacto que a introdução do diagnóstico clínico teve no número total de casos COVID19 na China. Foi uma medida tomada enquanto o país ampliava sua capacidade de testes diagnósticos que ajudou no controle local da epidemia: casos confirmados mais rapidamente levaram a realização mais precoce do processo de busca ativa e isolamento de contatos.

Diagnóstico clínico-radiológico passou a ser permitido na China a partir do dia 12 de Fevereiro de 2020.

Para sairmos do isolamento social teremos que sacrificar nossa liberdade e privacidade

É compreensível que a população esteja questionando quando finalmente poderão voltar as suas vidas normais. No entanto, não é difícil imaginar que apenas uma minúscula parcela da população geral já teve contato com o SARS-Cov-2 e, portanto, sair do isolamento levará a uma explosão de novas infecções entre a população que ainda não apresenta qualquer grau de imunidade ao vírus. Essa é a tão falada “segunda onda”, como vocês podem ver na figura abaixo, derivada do Report 9 do Imperial College London.

Modelagem matemática do efeito esperado de diferentes intervenções sociais (graus de isolamento/”quarentena”) no número de leitos de UTI necessários para atender pacientes exclusivamente COVID19. A curva verde refere ao que no Brasil chamamos de “isolamento horizontal”: distanciamento social de 70% da população, além de ótimas taxas de isolamento de pacientes sintomáticos e de todos que residam no mesmo domicílio e fechamento de escolas e universidades. A área sombreada iniciando na última semana de março indica o período no qual essas medidas sociais estariam em vigor (5 meses de isolamento de idosos, 4 meses para o restante).
Visão ampliada da parte inferior do gráfico anterior.

Assumindo transmissão comunitária significativa, a única forma do nosso de qualquer sistema de saúde ter capacidade para atender esse gigantesco número de pacientes é implementar as medidas sociais referentes a curva verde dos gráficos acima. No entanto, quanto mais agressivo for o achatamento da curva, maior a fração populacional de suscetíveis (não-imunes), e maior será a segunda onda quando o isolamento for revogado (na ausência de outras formas de contenção). Portanto, não é novidade para ninguém que as atuais medidas de isolamento não são uma solução, e sim um remendo temporário com a finalidade de nos ganhar tempo para ampliar e equipar nossos sistemas de saúde, ampliar nossa capacidade de realizar testes diagnósticos, desenvolver pesquisas e testar possíveis terapias e vacinas.

Para se evitar uma segunda onda ao sairmos do isolamento social, precisamos ter capacidade de rapidamente detectar, tratar e isolar novos casos; colocar em quarentena familiares ou outras pessoas que residem no mesmo domicílio; buscar, testar e isolar contatos recentes. Isso pode parecer simples, mas não é. E mesmo que façamos toda a parte técnica, esse sistema de “contact tracing and isolation” necessita que de fato as pessoas identificadas respeitem e mantenham isolamento por 2 semanas ou mais. Não é esse isolamento meia-boca que temos visto no Brasil, onde pessoas suspeitas não estão trabalhando, mas continuam indo a padaria ou ao mercado. Para que funcione, o isolamento de confirmados e suspeitos é total: não sair de casa nem para ir ao mercado, ter todas as suas compras deixadas em sua porta por um familiar ou amigo e nenhum tipo de visita ou saída é permitida. Dada a conhecida teimosia em seguir regras de grande parte da população brasileira, será certamente necessário o uso de forças de segurança (e possivelmente alterações na legislação) para garantir que esse nível de isolamento seja possível para um número considerável de brasileiros. Além disso, suporte financeiro e garantias trabalhistas serão necessários para todos que forem ordenados a se isolar.

Um estudo recente publicado na Science estimou que a fração de pessoas contaminadas por pessoas assintomáticas ou pré-sintomáticas é de ~50%. Ou seja, sem busca ativa de contatos e isolamento “profilático” desses indivíduos, não temos chance de quebrar a cadeira de transmissão do vírus, o que inevitavelmente levará a continuidade de sua progressão geométrica e, em certo momento, colapso do sistema de saúde.

O mesmo estudo simulou o impacto de diferentes “níveis” de isolamento de sintomáticos e de quarentena de assintomáticos na disseminação do vírus.

Eixo horizontal é a eficiência em se isolar casos sintomáticos suspeitos/confirmados, eixo vertical é a eficiência em se identificar e colocar em quarentena os contatos de casos suspeitos/confirmados. Da esquerda para a direita são diferentes simulações desses cenários assumindo um atraso de 3, 2, 1 e 0 dias (respectivamente) entre a identificação de um caso suspeito/confirmado e o isolamento/quarentena deste caso e de seus contatos. A linha preta contínua indica o provável limiar para controle da transmissão e as linhas tracejadas indicam a incerteza desse limiar. Regiões acima e a direita da linha preta indicam controle da epidemia, enquanto regiões abaixo e a esquerda da linha preta indicam propagação da epidemia. Quanto mais vermelho mais a epidemia se alastra, quanto mais verde mais rapidamente ela é contida.

Podemos analisar na imagem acima que uma estratégia manual de busca de casos (assumindo 3 dias entre a identificação do caso índice e o isolamento deste e de seus contatos) é absolutamente insuficiente para se controlar a epidemia. Se pudéssemos fazer esse processo mais rápido, em 1 ou 2 dias, ainda precisaríamos de um nível irrealista de eficiência no isolamento/quarentena de casos e contatos. Por outro lado, uma estratégia que permita detecção e isolamento instantâneo de casos e contatos tem chances de funcionar, mesmo que consigamos apenas ~70% de eficiência. Para isso é necessário o uso intensivo de tecnologia, e é imprescindível que praticamente toda a população tenha que ser monitorada. Existem várias opções sendo discutidas, e algumas já implementadas em países como Coréia do Sul, Cingapura e Taiwan. Essas idéias revolvem no conceito de um aplicativo (ou possivelmente diretamente pelo sistema operacional dos smartphones) que registra toda a sua movimentação por GPS/antenas/bluetooth e envia em tempo real esses dados para que as autoridades de saúde possam cruzar com a movimentação dos últimos 4-7 dias de pacientes recentemente diagnosticados. Isso requer não apenas monitoramento em tempo real de toda a população, mas também o armazenamento de todo o histórico da movimentação de cada aparelho pelos últimos ~7 dias. A figura abaixo dá uma idéia de como um sistema desses funcionaria.

Indivíduo (A) está infectado mas ainda não desenvolveu qualquer sintoma. Ele sai da casa onde vive com sua esposa, usa transporte público, vai ao trabalho e retorna a sua casa. No dia seguinte acorda com febre e, via aplicativo específico, avisa as autoridades de saúde, que imediatamente indicam isolamento e solicitam que uma equipe vá até sua casa para realizar teste rápido, que confirma COVID19. Imediatamente o sistema encontra todos os indivíduos que entraram em contato próximo com este paciente, envia uma ordem de quarentena por 14 dias para cada um deles e envia equipes de saúde para que realizem testes rápidos e descontaminação dos ambientes pelos quais ele passou. Ficção científica? Não, isso não só é possível como já é realizado em países asiáticos e está em testes em alguns países ocidentais. Infelizmente, se quisermos voltar a algum semblante de normalidade, precisaremos deixar para trás uma parte significativa de nossas vidas e de nossas liberdades individuais.

Exemplo de Cingapura. https://www.straitstimes.com/tech/singapore-app-allows-for-faster-contact-tracing
Contract tracing graphic
https://www.bbc.co.uk/news/technology-52246319

Fontes:
1) Report 9 – Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce COVID-19 mortality and healthcare demand [https://www.imperial.ac.uk/mrc-global-infectious-disease-analysis/covid-19/report-9-impact-of-npis-on-covid-19/]
2) Quantifying SARS-CoV-2 transmission suggests epidemic control with digital contact tracing [https://science.sciencemag.org/content/early/2020/04/09/science.abb6936]

Por que não instituir o “Isolamento Vertical”?

Não é mais sábio isolar apenas os grupos de risco e os que apresentarem sintomas?
Bem, inicialmente parecia uma boa idéia. E inclusive esse era o plano do Reino Unido até o dia 16 de Março (contrariando o resto dos países europeus), quando um estudo científico requisitado pelo governo e pela OMS foi publicado. Esse estudo mostrou que essa abordagem, embora tenha sim efeito prático, é insuficiente em prevenir o colapso do sistema de saúde. Caso continuado o isolamento vertical no Reino Unido (população 66 milhões, menos de 1/3 da Brasileira), 250.000 pessoas morreriam exclusivamente devido ao COVID19. No gráfico abaixo você pode ver que isolamento vertical atrasaria o pico e achataria a curva de casos que precisam de UTI, mas de forma absolutamente insuficiente. Seriam necessários pelos menos 8x mais leitos de UTI do que os existentes no país, e isso é algo totalmente impossível de ser atingido em um curto espaço de tempo.

Mas leitos de UTI não é o único problema…

Em um sistema de saúde trabalhando abaixo de sua capacidade máxima:

De cada 100 pacientes COVID19
-80 terão apenas sintomas leves
-20 precisão de hospitalização

De cada 20 pacientes COVID19 hospitalizados
-15 precisam de oxigênio em enfermaria/sala de emergência/semi-intensiva
-5 precisam de ventilação mecânica em UTI

De cada 5 pacientes COVID19 em UTI
-3 sobrevivem
-2 morrem

Todos estão falando da falta de ventiladores/leitos de UTI suficientes para atender a demanda. Outros já aceitaram a morte dessas milhares de pessoas como um algo triste mas necessário para se evitar o colapso econômico e social do país. Porém os cálculos de mortalidade feitos até aqui se baseiam nessas estatísticas de gravidade clínica citadas. Mas ao chegarmos ao previsto colapso completo do sistema de saúde (mais de 8 vezes mais pacientes que o número de leitos disponíveis no caso do isolamento vertical), podemos esperar o seguinte cenário:

  • Leitos de UTI terão inicialmente baixa rotatividade, já que o mesmo paciente para se recuperar necessita de em média >14 dias de ventilação Mecânica/UTI;
  • Com UTIs completamente lotadas para se tentar ao máximo salvar esses pacientes (lembre-se que eles possuem 3/5 [60%] de chance de cura se bem tratados na UTI), agora teremos vários dos que não tiveram vaga nas UTIs ocupando as vagas de enfermaria, recebendo cuidados inadequados para sua gravidade. Esses pacientes que antes teriam uma chance de 60% de se curar, agora muito provavelmente terão uma chance de >90% de morrer.
  • Os pacientes hospitalizados porém menos graves (que superam numericamente os pacientes críticos em 3:1), que precisariam apenas de oxigênio por 6-8 dias, agora não terão acesso a essa medida simples e eficaz. Uma parcela significativa desses pacientes (>50%?) então progredirá de casos moderados para casos críticos, tanto por insuficiência respiratória quanto por descompensação de doenças de base por baixa oxigenação do sangue (Infarto, AVC, Insuficiência Renal Aguda, etc..). Todas essas situações necessitam de leitos de UTI e equipes especializadas, que estarão completamente incapazes de prover os cuidados necessários para manejos de complicações clínicas ainda mais graves que as do COVID19.
  • Neste cenário caótico, é de se esperar que a mortalidade suba muito rapidamente. Se anteriormente a cada 20 hospitalizados, 2 morriam. Agora, teremos certamente 5-10 mortes para cada 20 hospitalizações. E a medida que o caos progride e os pacientes continuam a chegar, essa proporção deve aumentar ainda mais, especialmente com equipes de saúde se contaminando acidentalmente e tendo que ficar isolados em casa por 14 dias.
  • Para ampliar o número de ventiladores disponíveis, salas de cirurgia (que possuem ventiladores utilizados durante anestesia geral) são convertidas em leitos de UTI. Isso impede obviamente sua utilização como sala de cirurgia, e cirurgias eletivas são canceladas. Mas e o que acontece quando temos cirurgias de emergência? E mesmo que tenha salas abertas, para onde irão esses pacientes de cirurgia de emergência após o procedimento cirúrgico?
  • Portanto a medida que o caos progride, a mortalidade geral sobe e bastante. E com ela sobe também a mortalidade (antes muito baixa) em atendimentos a doenças não relacionadas ao COVID, como acidentes de trânsito, doenças cardiovasculares, cirurgias abdominais e cirurgias oncológicas, justamente por falta de suporte de alta complexidade.
  • Ao termos tanta gente internada nos hospitais do país com o mesmo quadro, é de se esperar que os mesmos medicamentos e insumos sejam necessários. Embora COVID19 seja causado por um vírus específico, após alguns dias hospitalizados os pacientes em deterioração clínica receberão tratamento com combinações de antibióticos de amplo espectro. Além disso precisarão de anticoagulantes para evitar problemas de coagulação/tromboses, até porque terão mobilidade extremamente restrita em hospitais completamente lotados. Não haverá doses suficientes desses medicamentos para que tratemos tanta gente com o mesmo diagnóstico ao mesmo tempo. E ao faltar qualquer medicamento essencial, novamente veremos aumento de mortalidade.

Se você acha que esse cenário é muito ruim e apocalíptico, é porque é mesmo. Se não fosse, não teríamos as maiores economias do mundo fechando fronteiras, parando todo o comércio e indústria e recusando o dinheiro que turistas trazem. Se você ainda achar que a situação não é tão grave assim….. talvez tenha algo errado contigo.

Fonte:
1) Report 9: Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce COVID-19 mortality and healthcare demand (16/03/2020) [https://www.imperial.ac.uk/…/Imperial-College-COVID19-NPI-m…]

[Texto originalmente publicado no Facebook em 26/03/2020: https://www.facebook.com/rparolin/posts/10157711963435568]