Meu último suspiro na COVID19

Após quase 2 meses dedicados a estudar a COVID19 em todos os seus aspectos, preciso retornar a minha pesquisa do doutorado e deixar a COVID19 para trás. Mas antes de fechar o blog, deixo uma lista de perguntas frequentes e minhas respostas. E também teço alguns comentários sobre as estratégias de controle. Caso tenha alguma dúvida ou queira a referência para algum dado específico, deixe um comentário.

O vírus mata em proporção semelhante a gripe?

Não. O vírus da COVID-19 mata (muito) mais que o conjunto dos vírus que causam a gripe, mesmo quando consideramos o vírus de gripe pandêmico em 2009. Mas infelizmente não sabemos ainda a letalidade exata da COVID19.

Como você pode afirmar que mata mais do que a gripe sem saber exatamente quantas pessoas morrem em decorrência de COVID19?

Várias cidades já foram fortemente atingidos pela COVID19 e o número de mortes de pacientes COVID19 nesses locais em curto espaço de tempo nos dizem que esse é um vírus com letalidade relativamente alta. Não vimos esse tipo de mortalidade e caos sanitário mesmo no auge da pandemia de gripe H1N1 em 2009. Você se recorda de notícias de enterros em valas comuns e caminhões frigoríficos armazenando corpos em outros anos?

Mas por que você não diz um número exato, como “mata 10x mais do que a gripe”?

A verdade é que também não sabemos exatamente qual a letalidade da gripe, então fica difícil comparar as duas infecções. A gripe é uma doença que circula há muito tempo, causada por diversas variantes de um mesmo vírus (Influenza), que sofre mutações frequentes para as quais desenvolvemos anticorpos que são parcialmente ou completamente efetivos. Além disso, temos vacina que também pode conferir proteção parcial a uma nova “cepa” do vírus que venha a surgir. Apenas citar números como 0.1% (CFR) é desconsiderar todas as incertezas em torno de como esses números foram calculados . O fato é que na realidade atual a gripe, mesmo em anos ruins, não leva a sobrecarga dos cemitérios e crematórios. Mas pode ter certeza que de agora em diante os cientistas serão muito mais cuidadosos em tentar calcular adequadamente esses números, até porque essa não será a última pandemia que viveremos.

Qual a letalidade da COVID19?

Depende de como é calculada e de qual população estamos falando. Para começar, temos um cálculo mais simples chamado CFR (case-fatality ratio), que divide o número de mortes pelo número total de pacientes diagnosticados como COVID19. Países que fazem muitos testes diagnósticos em casos leves/moderados irão identificar mais casos confirmados, e “diluir” as mortes em um contingente maior, reduzindo a letalidade (CFR) aparente.  Outros locais, como o Brasil, vão testar apenas os casos graves e assim terão um denominador menor, inflando a estimativa CFR de letalidade. Logo, mesmo que a letalidade real seja exatamente a mesma em dois locais, a escolha de quem é testado e a disponibilidade desses testes irá afetar os números oficias divulgados. Outro fator que afeta os cálculos é a estrutura demográfica da população estudada: como a COVID19 é muito mais grave em idosos do que em jovens, a letalidade geral dependerá da proporção de idosos no local estudado. E obviamente a letalidade também depende da qualidade do atendimento médico e dos recursos hospitalares disponíveis na região. Cem pacientes de exatos 70 anos diagnosticados e tratados em Parintins (AM) não terão a mesma letalidade que o mesmo número de pacientes de mesma idade diagnosticados e tratados em Zurique, na Suíça.

Esses cálculos até agora ignoraram um segmento importantíssimo: um grande número de pessoas infectadas que não apresentam nenhum sintoma ou que tiveram sintomas tão leves que nunca buscaram atendimento médico. Até meados de Março não sabíamos se esse número era grande ou pequeno em proporção ao número de casos confirmados. Também não sabíamos se essas pessoas podiam transmitir a doença mesmo não tendo sintomas. Estaríamos diante de uma pirâmide de gravidade, com uma larga base de assintomáticos? 10 assintomáticos para sintomático? Ou mil para um?  Ou eram os assintomáticos casos isolados, raros, e que não ofereciam risco de transmissão. Tínhamos muitas dúvidas e poucas respostas. Felizmente hoje temos muito mais dados: sabemos que cerca de 50% de todos os infectados nunca desenvolvem sintomas, ou seja, diagnosticamos oficialmente apenas uma minoria de todos os infectados. Quando calculamos o número de mortes dividido pelo número total de infectados, chegamos a outra estimativa de letalidade chamada IFR (infection-fatality ratio). Essa é a medida mais importante, mas obviamente é também influenciada pela estrutura demográfica da população e pela qualidade do atendimento médico disponível. Mas em geral, a letalidade IFR da COVID19 é de algo entre 0.5% e 1% de todos os infectados se tratamento médico de qualidade estiver disponível a todos que precisarem.

Então menos de 1% dos infectados irá morrer. Isso justifica esse caos todo?

Isso é uma questão para os gestores e para a sociedade decidirem, quanto vale cada vida e quantas mortes são aceitáveis. Mas embora “apenas” 1% dos infectados morram apesar dos melhores cuidados médicos, a realidade é que 5 a 10% de todos os infectados desenvolvem sintomas graves que necessitam de internamento hospitalar e oxigênio. Para que tenhamos 1% de mortalidade, precisamos atender bem esses 5-10% de paciente graves, salvando 80-90% deles com medicina de qualidade. Simplesmente não existe capacidade hospitalar para atender tanta gente.

Os hospitais brasileiros sempre foram superlotados. Por que toda essa atenção agora para achatar a curva da COVID19 para evitar a sobrecarga de hospitais?

Sim. Hospitais brasileiros são cronicamente sobrecarregados, isso é fato conhecido. Um hospital que esteja funcionando a 150% de sua capacidade máxima é algo absolutamente caótico. Mas o atraso de 12 horas no tratamento de um paciente com a perna quebrada, um corte na cabeça ou mesmo sintomas de dengue raramente tem potencial de levar o paciente a morte. As verdadeiras emergências, aquelas para as quais uma rápida intervenção faz a diferença entre a vida e a morte, está geralmente disponível em praticamente todos os hospitais brasileiros, apesar da sobrecarga. Dificuldade para respirar, dor no peito, sinais de derrame cerebral, pressão baixa ou alta demais são critérios de triagem que fazem com que um paciente seja atendido imediatamente, passando na frente das centenas de pessoas que aguardam na fila há 12 horas para serem atendidos por sintomas de dengue. Ou seja, embora hospitais brasileiros sejam cronicamente sobrecarregados, sabemos que se REALMENTE tivermos uma emergência, quase sempre seremos atendidos com rapidez e com um mínimo de recursos básicos. A diferença, no caso da COVID19, é que um grande número de pacientes apresenta o mesmo sintoma e precisam ao mesmo tempo de um mesmo recurso: OXIGÊNIO. Para piorar, esses pacientes que chegam com falta de ar vão continuar internados por 1-6 semanas até saírem do hospital, vivos ou mortos. Em comparação, um paciente em crise de asma grave pode ser tratado e ter alta do hospital em poucas horas. Portanto, a sobrecarga crônica dos hospitais brasileiros é de grande volume (de pacientes) e baixa gravidade (dos problemas atendidos), enquanto a sobrecarga aguda da COVID19 é de grande volume e alta gravidade.

E qual o tamanho da sobrecarga possível pela COVID19?

Da ordem de 250 vezes a capacidade hospitalar máxima caso não fizéssemos absolutamente nada para conter a pandemia (nenhuma restrição social e ninguém mudasse seus hábitos usuais). No cenário mais provável de um cenário semelhante ao “isolamento vertical”, ainda estaríamos falando de uma sobrecarga de 8 vezes a capacidade máxima hospitalar disponível. Ou seja, mesmo supondo que todos os recursos hospitalares existentes fossem exclusivamente dedicados a pacientes COVID19, sete em cada 8 pacientes morreriam na porta do hospital.

Achatar a curva

Em minha opinião, toda a propaganda em torno da idéia de achatar a curva de casos foi incorreta. Eu mesmo compartilhei gráficos bonitos sobre isso, pois veiculam um conceito complexo de forma simples. No entanto, descobrimos em meados de Março que o conceito estava errado, mas para manter o público (europeu) engajado, a estratégia de comunicação foi mantida e funcionou bem. Infelizmente, em um país como o Brasil, essa estratégia foi desastrosa.

Achatar a curva implica aceitarmos que praticamente toda a população será infectada, e que se pudermos diluir as infecções ao longo do tempo poderemos dar o melhor atendimento médico possível a todos que precisarem. Isso era a estratégia de mitigação que o Reino Unido seguia inicialmente: “as infecções são inevitáveis, mas um colapso hospitalar pode ser evitado se protegermos certos segmentos da população e mudarmos alguns hábitos sociais, mas em geral a sociedade continua funcionando. Quando >50% da população se infectar, poderemos retornar a vida normal”. Nas estratégias de mitigação a curva de casos é ascendente até que o limiar de imunidade de rebanho (~60-70% da população) seja atingido, e demora-se muito tempo até chegarmos até esse ponto. Essa era uma estratégia válida, embora controversa, diante dos dados científicos disponíveis à época. Na metade de Março novos dados surgiram indicando que essa estratégia, mesmo se perfeitamente executada, levaria a um número incrivelmente elevado de mortes no Reino Unido ao longo de dois anos, e mesmo assim ocorreria colapso hospitalar por alguns meses. O governo britânico julgou inaceitável essa perda de vidas e, a partir desse momento, uma mudança radical de política pública aconteceu.

Sai a mitigação, entra a supressão

A mitigação não era mais uma alternativa viável, e a única medida adequada seria a supressão: bloquear imediatamente a circulação do vírus na sociedade, usando todas os artifícios possíveis para o mais rapidamente possível colocar a curva de casos diários em trajetória descendente. Para isso seria necessário parar o funcionamento normal da sociedade por alguns meses, sendo o achatamento da curva portanto uma consequência, e não um objetivo em si. Como uma parcela significativa da população trabalha em setores essenciais — saúde, segurança, produção e distribuição de alimentos — que não podem ser simplesmente suspensos, a maior parte da população precisaria fazer um isolamento muito intenso por alguns meses para que a supressão da circulação do vírus fosse atingida. Portanto o objetivo não era o achatamento da curva e sim o esmagamento da curva, trazendo o número de casos a quase zero.  Durante esse processo de intensas restrições sociais, a menor circulação de pessoas nas ruas traz o efeito benéfico adicional quase imediato de aumentar a capacidade do sistema de saúde ao reduzir o número de acidentes de trânsito e acidentes de trabalho (mais da metade dos leitos de UTI brasileiros são ocupados por vítimas de acidentes de trânsito, em geral motociclistas). E o cancelamento de cirurgias eletivas (ortopédicas, ginecológicas, plásticas, etc.) libera ainda mais leitos hospitalares. Assim o governo ganharia tempo para equipar o sistema de saúde pública com EPIs, ventiladores, leitos hospitalares extras, treinamento de equipes e principalmente desenvolvimento e ampliação da rede de testes diagnósticos. Durante esse processo, a ciência estudaria o vírus e a doença, testaria novos medicamentos e começaria o processo de produção de vacinas.

Mas por que você acha que a estratégia de “achatar a curva” foi desastrosa no Brasil?

Pois a população geral entendeu que precisaria manter o isolamento social até o surgimento de uma vacina, e de imediato “jogaram a toalha”. Uma parcela significativa da população e de governantes colocou na cabeça que tal proposta era inviável e que teríamos que aceitar a morte de milhares de cidadãos (“Vai morrer gente. E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?”). E mesmo a população, que deveria cobrar de seus governantes pacotes de ajuda financeira, entrou na onda de “O Brasil é um país pobre, não temos como financiar isso”. Creio que se uma estratégia de comunicação clara tivesse sido realizada inicialmente, explicando a população que sacríficos seriam necessários por 2 ou 3 meses, que ajuda financeira estaria disponível e que passaríamos por tudo isso juntos e sairíamos mais fortes lá na frente…  estaríamos em uma situação muito diferente hoje.

Mas quanto menos casos tivermos agora, mais pessoas continuarão suscetíveis e mais casos teremos em uma segunda onda. Não estamos trocando seis por meia dúzia? Faz sentido essa estratégia de supressão?

Faz sentido por várias razões:

  1. Mesmo a mais restritiva medida de mitigação (“isolamento vertical”) ainda leva a colapso hospitalar de várias vezes a capacidade máxima do sistema de saúde, matando muito mais pessoas no total.
  2. Sem supressão, incorremos no custo da oportunidade de ter salvo milhares de vidas com terapias que serão descobertas alguns meses no futuro. 
  3. Quanto mais estudamos o vírus e a doença que ele causa, mais percebemos que não parece ser uma síndrome benigna quanto pensávamos. Os sintomas não são apenas respiratórios, e já começamos a ver indícios de que sobreviventes podem ter sequelas permanentes.
  4. O tempo que ganhamos agora é utilizado para desenvolver estudos sobre o vírus/doença, equipar sistemas de saúde e desenvolver políticas públicas que permitirão um retorno seguro a uma vida parecida com a que tínhamos antes.

Os cientistas dizem que uma vacina só estará disponível daqui pelo menos 12 meses. Não temos como ficar trancados em casa por tanto tempo. Vamos morrer de fome.

Ninguém pediu que ficássemos trancados em casa até que uma vacina estivesse disponível, mas precisamos nos isolar até que tenhamos um esmagamento da curva e condições de retornarmos cuidadosamente a um grau de semi-normalidade. Não só o número de casos precisa estar em curva descendente (indicativo de que as restrições estão funcionando), mas também precisamos ter capacidade de diagnosticar novos casos precocemente e rastrear e isolar contatos recentes desses casos. Isso significa desenvolver uma grande rede de laboratórios capazes de fazer dezenas de milhares de testes de alta complexidade por dia e recrutar um exército de funcionários para as secretarias municipais de vigilância epidemiológica para fazer investigação, rastreio e bloqueio de cada novo caso. Seria de nosso interesse como cidadãos, mas também do interesse do governo como fiador de uma economia deprimida, que isso fosse feito da forma mais rápida possível para podermos retornar a uma semi-normalidade em um período de 6-12 semanas.

As empresas brasileiras não tem caixa para ficarem paradas por 2-3 meses. As famílias brasileiras não tem reservas financeiras para ficar sem trabalhar por 2-3 meses. Se eu não trabalhar hoje, eu não tenho como comprar comida.  Como esperar que as pessoas fiquem em casa?  

Para que as pessoas fiquem em casa, é imperativo que haja comprometimento do governo em financiar esse período “improdutivo”. Literalmente o governo federal precisa pagar pelo menos parte do salário da maior parte dos trabalhadores para que eles possam ficar em casa. E precisa ter pacotes de auxílio as empresas para evitar demissões em massa e quebradeira geral. É uma situação extremamente difícil e custosa, mas não existe mágica e precisa ser feita.

O Brasil é um país pobre, não temos a mesma capacidade de países ricos.

As maiores economias do mundo tiveram que usar suas reservas e imprimir mais dinheiro para conseguir bancar os salários das pessoas que ficam em casa. E tiveram que dar incentivos aos bancos para que emprestem dinheiro a juros baixíssimos a empresas, inclusive assumindo o risco de calote. Essa conta será paga pelas próximas gerações, assim como gerações pagaram os custos da 2a guerra mundial. A desculpa de “somos pobres demais para lutar” não é válida na pandemia, assim como não é válida em uma situação de guerra. Os países europeus declararam guerra ao coronavírus precocemente, e entenderam que esses custos gigantescos são necessários. Mesmo nossos vizinhos Argentina, Paraguai, Uruguai e Chile, em situação fiscal semelhante ou pior, tomaram as medidas necessárias e hoje colhem o sucesso de um controle sanitário. O problema no Brasil é a falta de foco. Ao tentar ter dois pássaros na mão, acabamos com nenhum. A economia frangalha ao mesmo tempo que a epidemia corre descontrolada. Somamos um caos sanitário a uma recessão econômica, e ignoramos o fato de que a recessão será global e longa pois o mundo não será mais o mesmo. Para piorar, no melhor estilo Tiririca, adicionamos ao mix uma dose generosa de grave confusão política-institucional no pior momento possível. Essa é a receita do caos. 

O Brasil fez “quarentena” e o número de casos continua a subir. Isso não é sinal de que a quarentena não funciona?

O isolamento que precisávamos ter feito era mais intenso e mais prolongado do que foi efetivamente feito. Como mencionei antes, como cerca de 30% da população trabalha em setores ditos essenciais, os outros 70% precisam fazer um isolamento extremamente bem feito para que seja efetivo. As pessoas precisam viver dentro de sua bolhas familiares com contato externo praticamente nulo durante todo o período. Isso envolve não encontrar familiares ou amigos por várias semanas. E isso tem que ser seguido a risca. Isso não foi feito no Brasil, a não ser por uma pequena parcela da população. O isolamento com objetivo de supressão da circulação do vírus é algo que, se não for seguido por pelo menos 60-70% da população, não é efetivo. Os índices de mobilidade mostram que as pessoas cansaram rapidamente, provavelmente induzidas por líderes políticos e sociais, que mantinham discurso destoante do resto do mundo. Na época que os isolamentos começaram, tínhamos poucos casos no Brasil, e a contenção era relativamente fácil. Tudo o que precisávamos fazer era ficar em casa, e tudo o que o governo precisava fazer era coordenar uma campanha de “Fique em Casa. Salve Vidas” e financiar esse período “improdutivo” enquanto trabalhava para ampliar o sistema de saúde, testes e rastreio.

Mas algum isolamento é melhor que nenhum isolamento, certo?

Sim e não. Quanto maior o grau de isolamento, mais devagar será a progressão da epidemia na população. Então o isolamento feito até agora foi muito importante para atrasar o “pico da epidemia” e assim ganhamos alguns meses que nos permitiram comprar EPIs e ampliar a capacidade hospitalar em quase todas as regiões do país. Mas como diversos estudos apontam, não foi intenso o suficiente para que a supressão fosse atingida. Ou seja, achatamos a curva sem esmagá-la, e agora entramos no período onde o número crescente de casos chega próximo do limite da capacidade hospitalar nos maiores centros urbanos do país. De forma muito triste vemos que a capacidade máxima hospitalar foi ultrapassada em diversas regiões do norte e nordeste do país, com grande número de mortes até o momento. Como não atingimos a supressão (definida pelo número de reprodução R menor que 1), continuamos em crescimento exponencial. Com R maior que 1, essa semana temos mais pessoas com infecção ativa do que semana passada, e semana que vem teremos mais do que agora. Isso significa que após mais de 2 meses de restrições sociais, em praticamente todas as cidades do país o número de infecções ativas agora é superior ao que era no dia em que entramos em “quarentena”. Estamos “piores” e mais próximos do colapso sanitário hoje do que estávamos antes de entrarmos em quarentena. Todo esse custo social e econômico, para indivíduos e empresas, aconteceu sem que exista um ganho real. Sim, evitamos centenas de milhares de mortes nos últimos 2 meses, mas essas mortes terão sido apenas adiadas caso não tomemos logo medidas que visem atingir a supressão da transmissão. 

Mas os hospitais da minha região estão vazios. Não parece que o colapso esteja próximo.

Isso apenas indica que sua região ainda não possui um número grande de infecções ativas, mas não quer dizer que a epidemia esteja controlada. Para explicar essa situação geradora de falsa segurança, é necessário conhecer alguns dados:

  1. O número de reprodução R é uma estimativa da taxa de propagação da infecção. No começo da pandemia na China consideramos que uma pessoa infectada em média transmitiu a doença para mais 3 pessoas (R = 3) . Atualmente no estado do Paraná estimamos que R = 1.2, ou seja, 100 pessoas transmitirão para outras 120 pessoas (uma taxa de crescimento de 20%)
  2. Cada ciclo de infeções dura cerca de uma semana. Por exemplo, 100 infectados ativos na semana passada geram 120 novos infectados ativos na semana atual.
  3. O tempo de incubação (período entre o momento da infecção e o aparecimento dos primeiros sintomas) é de 5 dias.
  4. Em média demoram 8 dias entre o aparecimento dos primeiros sintomas e o agravamento do quadro a ponto do paciente buscar atendimento médico por falta de ar.
  5. Pacientes ficam internados 2 semanas até que morram ou recebam alta.
  6. A cada 20 pacientes infectados, 1 paciente precisará ser hospitalizado. Mas há grande diferença entre faixas etárias: entre os jovens 20-29 anos esse número é de 1 a cada 100, enquanto entre os idosos de mais de 60 anos cerca de 1 a cada 7 precisam ser internados.

Com isso em mente, podemos entender que, na sua região, o número de pessoas atualmente hospitalizadas por COVID19 depende do número de pessoas com infecções ativas duas semanas antes. Logo, em uma cidade com 100 leitos hospitalares disponíveis, se a taxa crescimento da infecção é de 20%  (R = 1.2) por semana, atingiremos a capacidade hospitalar máxima atual quando cruzarmos o número de 1200 infecções ativas 2 semanas atrás. Sei que é confuso, mas caso queira entender melhor desenhe a projeção de infecções ativas semana a semana. Na semana que chegarmos em 1200 infecções ativas, teremos cerca de 75% dos leitos hospitalares ocupados. Na semana seguinte teremos 1440 infecções ativas e 91% dos leitos ocupados. E na seguinte chegaremos a 110% dos leitos ocupados e 1728 infecções ativas. Logo, nosso índice de hospitalizações hoje é reflexo das infecções adquiridas 2 semanas atrás. De forma prática, ao multiplicar o valor de R pelo número de leitos hospitalares disponíveis vezes 10, encontraremos o limiar de infecções ativas que quando cruzado levará o hospital da sua região a atingir capacidade máxima dentro de 2 semanas. Infelizmente, quando atingido esse limite, é necessário impor restrições sociais muito intensas (‘lockdown’) por período prolongado até que o número de casos graves caia o suficiente. (Figuras 1 e 2).

As cores associam as infeções ativas de uma semana com as hospitalizações 2-3 semanas depois.
As cores associam as infeções ativas de uma semana com as hospitalizações 2-3 semanas depois.

Podemos entender então que (felizmente) sua região ainda não está próxima de atingir esse limiar. Apenas para fins de cálculos, se partíssemos de apenas um único caso importado de COVID19 para a região, demoraria cerca de 39 semanas para que o número de 1200 infecções ativas fosse atingido caso um R = 1.2 fosse mantido durante todo o período (log1.21200).

Como você explica a queda do número de hospitalizações e mortes em Manaus?

Essa é uma ÓTIMA pergunta, para a qual honestamente não tenho uma resposta definitiva. Mas para evitar a propagação de desinformação baseada em praticamente nada, vou deixar públicas minhas três melhores hipóteses:

  • Hipótese 1: A população realmente tomou medidas efetivas de distanciamento social e prevenção e efetivamente conseguiu reduzir o R para menos de 1. Acho essa hipótese improvável com os dados de mobilidades que vimos, mas também aceito que nossas estimativas de R para a regiao são muito ruins devido aos dados públicos ruins, a falta de testes, e provavelmente temos baixa captura de dados de mobilidade naquela região.
  • Hipótese 2: Imunidade de Rebanho efetiva foi temporariamente atingida em Manaus. O limiar (L) para imunidade de rebanho é calculado como L = 1 – 1/R0 . Ou seja, quando falamos em 60-70% estamos nos referindo a situação de retorno a normalidade social quando o Rt= R0 = 3.0. Mas como o R efetivo atual (Rt) está em em algum lugar entre 1.0 e 1.5, o limiar de imunidade de rebanho seria portanto de no máximo 33%. Acho essa uma hipótese muito provável, mas é claro que essa “segurança” da imunidade de rebanho só se mantém enquanto as medidas restritivas sociais todas se mantiverem. Com a flexibilização, sobe o Rt e sobe a fração de imunidade de rebanho, criando nova onda de infecções e mortes.
  • Hipótese 3: Uma mistura das hipóteses 1 e 2 adicionada de sociologia de redes sociais (social networks). Creio que em diferentes círculos sociais (em estratos sócio-econômicos) da população do AM, existam taxas extremamente discrepantes de infecção pelo SARS-CoV-2. E como essas redes sociais interagem pouco entre si, e possuem diferentes taxas de transmissão, acabamos com clusters de alto índice de infecção e clusters de baixo índice de infecção. Isso é fácil de ser testado com estudos sorológicos em diferentes estratos sociais. E minha maior suspeita é a de que a maior taxa será encontrada nas pessoas que tem envolvimento direto/indireto com o transporte de pessoas/mercadoria pelo rio Amazonas.
Criei essa visualização para analisar a progressão de casos na região.

Qual deve ser então o critério para que possamos retornar a (semi) normalidade?

Creio que os 5 critérios usados pelo governo do Reino Unido são simples e lógicos. Para poder flexibilizar as regras de isolamento (que foram efetivamente seguidas com grande apoio da população), os seguintes critérios precisavam ser cumpridos:

  1. O sistema de saúde tem capacidade para receber pacientes COVID19
  2. Uma queda consistente no número diário de mortes
  3. Dados confiáveis que demonstrem que a epidemia está regredindo para níveis toleráveis
  4. Logística assegurada de insumos hospitalares, EPIs e testes diagnósticos
  5. Confiança de que mudanças não acarretarão uma segunda onda catastrófica

Obrigado por ter acompanhado. Caso tenha interesse, esses são meus outros textos nesse blog.

15 comentários em “Meu último suspiro na COVID19

  1. Foi o que de melhor já li sobre a pandemia. Uma dialética compreensiva e dinâmica. É devastador o vírus, pra os idosos , então, é horripilante! Parabéns. Bom ter acesso ao seu pensamento.

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  2. Não é verdade que a pandemia reduziu em Manaus. O que reduziu foram as notificações oficiais por preessão politica. Aquui está piorando dia a dia.

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  3. O melhor texto, o mais coerente, a melhor avaliação, o olhar mais abrangente, de tudo que ja li a cerca da pandemia! Bravo!

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  4. Apesar da minha opiniao pessoal ser contraria — sou favoravel a relaxar a quarentena e deixar o virus seguir seu curso normal, sem asfixiar economicamente e financeiramente as camadas mais pobres da populacao que nao tem fonte de renda garantida (como emprego publico), nem a facilidade de poder fazer home-office sem ter corte de salario (ou perda de emprego) –, tambem achei o texto excelente, simples e instrutivo. Parabens!

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  5. Essa tradução foi feita de qual texto original ?
    Gostaria também de informações sobre países que imprimiram dinheiro por causa da covid. Tem links?
    Grato

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  6. Estudo com embasamento técnico apropriado.Retrospectivo para países que foram efetivos no esmagamento da curva.Traz diretrizes de conduta bem claras.
    Gostei.
    Parabéns

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